
Depois do meu texto sobre o desagravo crítico contra Os Paralamas, o velho debate veio à tona: foi o público que rejeitou nossos clássicos e menosprezou as bandas, ou foi a crítica que o fez?
Ponto inútil. Falsa contradição. As duas coisas podem coexistir. Apesar disso, há indicações muito fortes de que o viralatismo cultural impregnado na imprensa já chegou batendo as portas na cara das bandas nacionais que despontavam nos anos 80. Desde cedo.
Novamente foi o Márcio que me lembrou de um episódio crítico, ocorrido ainda em 1984 (às vésperas do 1º Rock In Rio). Lideradas por Nasi (à época, Nazi), do Ira! e Voluntários da Pátria, algumas bandas de SP formaram uma cooperativa, chamada “Cooperativa do Mundo Moderno” que, dentre outras coisas, organizava apresentações na boate Val Improviso.
Os eventos reuniam a nata do rock underground paulistano à época. Voluntários da Pátria, Ira!, Smack, Cabine C, Mercenárias, Akira S e as Garotas que Erraram, Fellini, etc. Incomodado com a “panelinha”, Guilherme Isnard, que saiu da Voluntários da Pátria e foi criar sua própria banda, a Zero, mandou uma carta para o então cronista musical da Folha de São Paulo, o Pepe Escobar, que escreveu uma nota detonando completamente o movimento, em 28/10/1984.
O resultado foi trágico. Mas antes de relatá-lo, é preciso dar nome aos bois. Pepe escrevia sobre música na FSP, e ficou conhecido como um dos caras que popularizaram o rock inglês em terras nacionais. Hoje, é um jornalista de geopolítica, conhecido por algumas análises cabíveis e outras (a maioria?) absurdas, amparadas por supostas fontes. Um dos episódios recentes completamente absurdos ligados ao Pepe Escobar foi quando ele afirmou (a partir de fontes “quentes”) que a Rússia havia abatido um avião israelense dotado de uma bomba nuclear, evitando assim a eclosão da 3ª Guerra Mundial**. Parece piada, mas não é. O tweet dele segue no ar, aqui.
Além disso, foi revelado depois, na biografia de Nasi (A Ira de Nasi) que, quando Isnard saiu da Voluntários, abriu-se a vaga para alguém assumir os vocais da banda. Entre os concorrentes estava o próprio Pepe Escobar, que perdeu a vaga para … Nasi. De novo, parece piada, mas não é. A foto a seguir vem da biografia, com a preciosa verificação factual do nosso amigo Márcio.

Já Isnard, mesmo tendo saído da Voluntários da Pátria, era um outsider. Trabalhava com moda e não se alinhava muito à orientação geral da turma (que era de esquerda). Isnard se defendeu, na carta ao Pepe, de recalque, mas acho que é indiscutível que havia recalque – não ataco aqui, a honra dos interlocutores, mas destaco apenas que haviam vieses fortes por trás dos ataques às bandas. A nota do Pepe na FSP está reproduzida neste blog (e segue abaixo um print, em péssima qualidade). O problema do texto não é nem a vontade declarada de bater nas bandas, mas o tom de agressão pessoal que ele toma, quando Pepe reproduz o termo de Isnard, “genealogia dos neonazi“- em uma referência infeliz ao apelido do Nasi, talvez motivada também pelas polêmicas em torno do hit Pobre Paulista ser ou não ser uma música xenofóbica***.

Agora chegamos às consequências. Irados (com o perdão da piada fácil) com a nota, as bandas do movimento foram à sede da Folha para tirar satisfações. 10 pessoas subiram à redação, dentre elas o Nasi, o Alex Antunes (do Akira S e futuro editor da Bizz) e Sandra Coutinho (Mercenárias, Smack!). As coisas tomaram proporções agressivas, com Nasi quase partindo para a porrada com o Pepe Escobar. Foi quase. Mas é óbvio que, quem conta um conto, aumenta um ponto. Há relatos mais radicais. Eu fico, novamente, com os fatos relatados na biografia do Nasi. O soco não saiu, embora o Boris Casoy (!!!) tenha sugerido ao Nasi que partisse para um “cruzado de direita no queixo” em uma próxima oportunidade.

Treta forte. Que não era, como nunca é, sobre a música. A Folha abriu espaço para uma nota de resposta das bandas poucos dias depois (em 30/10/1984) e, passado mais um tempo, organizou um debate com o rock paulistano em pauta. Não deu em nada. Mas a ideia de se debater a sério a cena nacional do rock seguiu viva. E as coisas melhoraram um pouco depois do Rock In Rio e do Hollywood Rock, tanto em termos de estrutura e profissionalismo para as bandas, quanto em termos de pensamento crítico. A revista Bizz, surgida em 1985, foi uma das grandes responsáveis pela qualificação intelectual.
Na edição #31 da revista, de fevereiro de ’88****, a revista reproduz um debate promovido por ela entre bandas e críticos (debate este que já inspirou uma mesa nossa: ouça aqui!). Estiveram presentes representantes de bandas enormes (Paulo Ricardo, Renato Russo, Herbert, Charles Gavin), medianas (Fê, Carlos Maltz, Nasi) e independentes (Skowa, Sandra Coutinho, João Gordo). Da parte da crítica estiveram presentes Alex Antunes (também músico na banda de Akira S), Sônia Maia, José Augusto Lemos (que integrou também a banda Chance), Jean-Yves de Neufville e Thomas Pappon (que falava também em nome da banda Fellini).
Aí o debate, ao menos a parte que foi transcrita, foi sensacional. Pouco produtivo, é fato, mas essencial por ter tocado nas grandes questões do rock brasileiro até hoje; as bandas grandes de certa forma defenderam a profissionalização e a necessidade de passar por rádio e TV para validação. As independentes, impulsionadas por coerência estética ou política mesmo (Nasi chega a chamar o programa do Chacrinha de fascista), defenderam outros modos. Charles Gavin, muito coerente, tentou conciliar os dois mundos, dando o depoimento espetacular de que os Titãs haviam emplacado vendas de mais de 100 mil cópias do Cabeça Dinossauro sem tocar nas rádios, ao menos inicialmente.
Muito foi dito, muito foi pensado. Ânimos se acirraram, especialmente entre o João Gordo e as bandas do mainstream. Mas foi espetacular ter existido um pensamento desse nível promovido e divulgado pela imprensa. Quase 4 décadas depois, podemos nos ressentir de não termos mais o rock no mainstream, mas é revigorante perceber que, já à época, havia o diagnóstico que sempre apontamos aqui: o problema não é o público. Público existe (e segue existindo). No debate, as bandas lembraram de diversos exemplos em que as independentes eram até favorecidas pela manutenção de um público fiel, fora dos grandes circuitos. Da parte do jornalismo, Lemos relatou que a Bizz tinha uma circulação na casa das 100 mil cópias mensais.
É bem evidente que, em qualquer cena, da mais independente à mais comercial, é necessário uma relação com meios de comunicação. Quando esta relação se rompe, ou se estremece, é impossível considerar um cenário saudável. O que vemos hoje no Brasil é uma grande efervescência de bandas de qualidade com pouquíssimos meios sérios e consideráveis capazes de promovê-las, para além das redes sociais da Big Tech que, convenhamos, não existem mais para promover absolutamente nada. Temos uma carência tão gigantesca de qualquer tipo de pensamento (voltado à cultura em geral) que nem faz mais sentido falar na ausência de um gênero específico naquilo que chamamos de mainstream.
É preciso uma reviravolta geral. Nestes momentos, estudar a história para compreender os desafios do passado (que seguem nos perseguindo) é algo fundamental.
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*A Patife Band, que musicou estes versos e que também fazia parte da cena paulistana, não foi à redação da Folha dar porrada em ninguém.
**Pepe é famoso por inventar histórias. Em ficção isso é legal, mas no jornalismo?! No tweet que destaquei, um dos primeiros replies é do jornalista Amaury Gonzo, citando uma “entrevista falsa” que Pepe teria feito com o The Cure. Não consegui confirmar essa informação, mas não duvido de nada vindo do Pepe.
***Essa polêmica é pesada, e segue em aberto. Há muitas versões conflituosas sobre a (verdadeira) natureza de Pobre Paulista.
****Recomendo que leiam essa edição inteira. É nela que podemos ver a polêmica votação de melhores do ano de 1987. A banda Fellini ganhou, com seu disco 3 Lugares Diferentes, mas dizem que por “força maior” a revista precisou botar os Titãs no primeiro lugar também, o que gerou o empate inusitado. Mas isso é história para um próximo texto. Por ora, é importante acrescentar que a edição da revista da Bizz (Showbizz, a partir de ’95) foi fundamental para o registro histórico não apenas daquilo que estava no mainstream. Como faz falta uma iniciativa dessas …