
Todos os anos a gente comenta sobre o quanto os nichos musicais dinamitaram a ideia de uma música hegemônica. Muito embora, em uma aparente contradição, gêneros hegemônicos continuem se impondo, porque ainda é a grana, no fim das contas, que dita as regras. O lance são as nuances: quando mesmo o que parece ser “mídia de massa” é bombado pelos nichos, fenômenos curiosos começam a acontecer.
Nas mídias tradicionais isso chega a ser engraçado. Na TV, a mídia de massa “por excelência”, a substituição da ideia de uma cultura de massa pela “cultura do fandom” tem gerado um descompasso comercial paradigmático. Isso se manifesta por todo canto. É só observarmos o BBB, sustentado nas bolhas virtuais por fandoms fanáticos que estão longe de representar as predileções da audiência “do sofá”. Isso anda deixando todo mundo desnorteado. De patrocinadores à direção do programa. Mas vai controlar fandom, vai…
Voltando à música, é fácil notar que parece haver uma cisão entre aquilo que é mainstream, por grana, e que ainda passa por TV, rádio e alguns veículos convencionais (no Brasil talvez o funk e o sertanejo estejam nesta gaveta), e aquilo que é mainstream sem parecer que é. É o caso do trap ou do k-pop. Existem grupos de k-pop com vídeos no YouTube com médias de 200 milhões de visualizações, e que muitos dos que me leem agora provavelmente nunca ouviram falar. Como isso é possível? A web tá aí pra mostrar que é, sim, possível existir um mainstream “silencioso”. Defendido por hordas fanáticas que aparecem mesmo para brigar por aquilo que já nasceu para ser mainstream– vocês certamente já ouviram falar dos “fãs de diva pop“: fandoms insuportáveis, por sinal.
Dito tudo isso, há a parte positiva da cultura dos nichos. E ela reside, pra variar, na música alternativa. A alguns anos temos visto álbuns bem fora da curva (em geral gringos) sendo ovacionados por comunidades, como fóruns (Reddit), ou como o site colaborativo Rate Your Music (RYM). Este segundo passou boa parte do ano de 2024 com Diamond Jubilee, de Cindy Lee, no #1 dos álbuns de 2024. E só não continuou assim até o fim do ano porque Magdalena Bay arrebatou todo mundo (inexplicavelmente). Seja como for, o site reflete uma espécie de hype “silencioso” sustentado pelas próprias comunidades alternativas de nerds musicais. Esse povo ainda existe, e está espalhado por redes menos mainstream. Que bom. Muita coisa ousada está aparecendo e furando bolhas por conta disso*.
Em 2025 o RYM mantém em sua 1ª colocação um disco (pasmem) de post metal (é, parece que isso existe): o Lonely People With Power, da banda Deafheaven. Em 2º lugar, a artista experimental eletrônica Jane Remover, com o disco Revengeseekerz. Jane passou por nosso grupo fechado, por indicação da nossa apoiadora Marin. A artista americana é egressa de nichos experimentais do Soundcloud, tendo “inventado” um microgênero (o dariacore) sob outro nome artístico (o de leroy). O dariacore é uma interpretação sensacional do EDM feita a partir de samplers muito bem transicionados. Como Jane Remover, a artista caminha para uma experiência que mescla dubstep e trap, além de esbarrar novamente no EDM. É tudo bem inspirador, alternativo e … novo.
Quando esses artistas de nicho rompem um pouquinho a bolha e aparecem em lugares como o RYM, é aí que começam a surgir reviews mais sérios, listas, etc. Me surpreende, até, saber que do Soundcloud ainda saem tantos artistas malucos. The Innernettes não seria nada, até hoje, não fosse a enorme comunidade de nerds musicais que se encontra por lá. God Bless. Quando trata-se de alternativo, a dinâmica não é a mesma do fandom tradicional que acaba convergindo para a música pop. Mas o processo de “subir” algo silenciosamente pelos espaços virtuais é similar, em proporções diferentes. Eu acho isso tudo muito louco. Tem pontos negativos, sim (a falta de consensos claros é um), mas também tem muita potência escondida por trás de um fenômeno que poucos parecem compreender bem. Vamos tentar?
*O Brasil, mesmo na cultura alternativa, parece restrito ao hype daquilo que já possui uma certa previsibilidade – padrões de composição, mixagem, texturas, etc. Mas é aquele ditado de Millôr, né: “quando as ideias ficam velhinhas, elas vêm morar no Brasil”. Fico sempre esperando a gente acordar, mas é foda. Parecemos cada vez mais caducos.