O mundo que esses caras querem para nós é muito, muito triste

A pirataria legalizada, além de ser o fundamento filosófico do streaming enquanto modelo de negócio, agora se expande às IAs Generativas.

Pegando carona nas recentes reflexões (nossas inclusive) sobre a insustentabilidade dos modelos de negócios criativos na era da Big Tech, venho hoje falar da Suno.

A empresa apresenta um modelo bastante avançado de geração de música através de Inteligência Artificial. Tão avançado que, em usos recentes, muita gente deve ter se perguntado como as IA’s musicais evoluíram tão rapidamente em tão pouco tempo. A resposta foi dada pela própria empresa, no tribunal onde se defende de um enorme processo movido contra ela pelas gravadoras. Admitiu-se que a IA da Suno é treinada a partir de “essencialmente todos os arquivos musicais de qualidade razoável que estão acessíveis na internet aberta”, o que inclui um total de “dezenas de milhões de gravações”. Tá aqui a fonte da matéria original, em inglês.

O sinceridício guarda uma dose de cinismo na vagueza de certos termos. O quê exatamente eles estão chamando de “arquivos musicais de qualidade razoável”? O que seria a “internet aberta” sendo que, ao pé da letra, qualquer dispositivo conectado à internet está (ao menos potencialmente) conectado a qualquer outro dispositivo conectado à internet? Acho que ninguém aqui nasceu ontem. O que a empresa está dizendo, com todas as letras (mesmo com o cuidado de soar vaga aqui e ali) é que qualquer música que estiver na internet e que puder ser acessada via streamings, sites privados, players de qualquer tipo (e mais: vídeos, trilhas, bancos de áudio, e um longo et cetera) pode servir de matéria prima de treinamento para a IA em questão.

A empresa Suno está, basicamente, assumindo que rouba músicas. Descaradamente, e sem o consentimento de artistas, gravadoras, selos, licenciadoras e qualquer outro agente econômico da cadeia produtiva musical. É pirataria legalizada. É certo que as empresas de streaming, Spotify à frente, estruturaram um modelo de negócios que é, igualmente, comparável à pirataria. Mas de outra forma: cooptaram, junto às majors*, os catálogos mais abrangentes o possível para “aprisionar” os usuários (antes perdidos no compartilhamento ilegal de mp3s na web) em troca de um valor mensal de assinatura. Ferraram toda a cadeia produtiva no processo, mas ainda esbarraram em um limite: a existência de uma cadeia produtiva. Agora, com o advento de IAs avançadas de criação musical e as evidências cada vez mais explícitas de que o Spotify (em específico, mas nunca isoladamente) trabalha com “artistas-fantasma” e todo o tipo de artimanha para reduzir os repasses devidos à artistas e selos pequenos e médios (ver o texto do nosso Bruno Leo de semana passada), não há limites para a expropriação.

O despropósito do cenário – músicas produzidas por robôs sendo reproduzidas por robôs em plataformas cujos algoritmos são programados para alimentar uma roda viciada de “relevância”- certamente fornece munição aos defensores da “Teoria da Internet Morta“. Mas há certamente mais conclusões melancólicas a serem tiradas disso tudo. Aprofundando minha pesquisa no problema da Suno, descobri que seu CEO, Mikey Shulman, um rapazinho formado em Cambridge que se denomina em sua Bio no Twitter como “Aspirante a atleta medíocre. Anteriormente um músico medíocre“, andou dizendo umas coisas reveladoras por aí. Como, por exemplo, que as pessoas “não curtem” mais fazer música. Para ele, o fazer musical é muito cansativo, porque envolve horas e horas de esforço, aprender instrumentos, etc. A maior parte das pessoas, no mundo em que ele vive, simplesmente prefeririam utilizar uma plataforma automatizada.

Eu sinto dizer ao Sr. Shulman que ele está errado. E que é provavelmente sua frustração (a de ter sido um músico medíocre) que está falando. Na verdade, se eu for pensar direitinho, verei que a única coisa que dá sentido à minha vida é a criação musical. Sem o fazer artístico musical, e sem a descoberta do fazer artístico de outros (ainda) humanos, eu provavelmente não teria muitos motivos para acordar pelas manhãs. Ao fim e ao cabo, isso me leva à derradeira conclusão de que o problema que estamos enfrentando hoje, do liberalismo aceleracionista-individualista desenfreado, associado à ferramentas de tecnologia “disruptivas” é, apenas, muita frustração e tristeza engasgada no peito de uns homens muito tristes. E, portanto, cruéis. O mundo que esses caras querem para nós é absolutamente deprimente. Sem cor, sem graça, sem erro, sem amor.

Fugir disso tem se demonstrado muito complicado, mas outros acontecimentos recentes parecem ter chacoalhado um pouco o cenário. Em um momento em que o valor (abstrato) das gigantes da Big Tech é inflado absolutamente pela “caixa preta” das IAs, uma empresa chinesa chamada Deepseek aparece no rolê com uma LLM muito mais barata e eficiente. Justamente por já se valer de anos de aprendizado de máquina da Open AI, a Deepseek propõe um novo modelo (o reinforcement learning e o método MoE- Mixture-of-Experts, que otimiza profundamente as entregas). A ironia final parece ser a seguinte: do mesmo jeito que empresas privadas americanas pirateiam a internet inteira para alimentar seus modelos privados de IAs, uma empresa chinesa utiliza os modelos de empresas privadas americanas para aperfeiçoar seus serviços e disponibilizar isso para a humanidade. Gratuitamente, e com código aberto. E mais, sem grandes pegadinhas de coleta de dados de usuários desavisados.

Ainda dá tempo de fugir do mundo horrível idealizado pelos psicopatas do Vale do Silício. Ainda dá tempo da tecnologia ser emancipatória.

E, sobre a música? Não mexam com ela, rapazes. Sem poesia, até a vida de vocês, que já deve ser bastante triste, pode piorar ainda mais.

*O esquema do Spotify com as majors é, na realidade o “pecado original” da plataforma, e explica boa parte de suas práticas eticamente questionáveis. Isso é explicado de forma muito clara pelo escritor e pesquisador Cory Doctorow em menos de 5 minutos no vídeo abaixo. Acho que o autor é muito feliz no diagnóstico que realiza sobre a captura que a Big Tech produziu na cultura. Ele explica o modelo de negócio dessas empresas, que estaria atualmente no estágio de Enshittification, em seu livro Chokepoint Capitalism.