
Outro dia, na redação Silencio no Estúdio, tivemos mais uma conversa sobre a eterna questão da mídia física. Especificamente, sobre como defender esse tipo de colecionismo, para além do mero fetiche. Pode ser só por fetiche também, gente, tá liberado. Mas o ponto é que esse assunto envolve questões muito mais abrangentes.
O Bruno Leo relatou que seu menino, Arthur, veio lhe questionar sobre isso. Por quê, afinal, ficar comprando discos, se tudo está online? A resposta foi categórica. “Se alguém tropeçar no fio da internet, eu tenho minhas musicas”. Esse é o raciocínio correto, e a resposta oficial. Mas existem ainda outros pontos relevantes. Comecei a falar da dificuldade que iremos enfrentar logo mais (e que já começou a aparecer por aí) em relação à preservação das obras originais, com as intenções dos artistas garantidas*. Márcio lembrou das aberrações póstumas que têm sido feitas, mas ainda existe o aspecto mais silencioso e bizarro disso tudo (na minha opinião) que é a interferência “sutil” em obras clássicas. Um exemplo extremo? Existem, no canal oficial da banda Queen, no YouTube, versões autotunadas de vocais de Freddie Mercury. Pois é. O nome disso é revisionismo, e as implicações mais graves deste processo são assuntos para outro texto.
Ao mesmo tempo em que todas essas reflexões surgiam, redescobri uma gravação de Tom Jobim e Nara Leão que conseguiu amarrar todo o pensamento, me levando a conclusões relevantes. Trata-se de uma versão da canção Fotografia que, pelo visto, é bastante rara – mas que é a melhor gravação que conheço da canção, sem sombra de duvidas. Eu tenho a musica em uma coletânea do Tom que comprei por volta de 2000 e poucos, e vira e mexe me lembro dela, porque a interpretação, o arranjo, etc, são realmente inesquecíveis. Ao cavucar a web, não achei a canção nos streamings. Nem no catalogo do Tom nas plataformas, nem no de Nara. Onde estaria essa canção, meu deus do céu? Bom, pra mim, em um CD. Peguei ele atrás de respostas, mas o encarte não oferecia muitas explicações, a não ser uma data: 1977.
Foi o suficiente. Descobri, pela web, que a canção foi gravada por Nara em um disco seu de carreira, chamado Os Meus Amigos São Um Barato, de 1977. O disco parece ser bem raro mesmo. Existem registros no discogs, no site oficial da cantora, e, claro, nos full albums do YouTube (linko abaixo). O disco em si não é lá essas coisas. Trata-se, literalmente, de Nara gravando canções de seus amigos. Mas é nele que encontra-se a versão mais consagrada (embora não a melhor) de Meu Ego, do meu pai Erasmo em dueto com ela, e as versões definitivas de pelo menos dois clássicos: João e Maria, de Chico Buarque, e Fotografia, de Tom Jobim. A seguir a pedrada da gravação de Fotografia: um dueto perfeito, com arranjo e interpretações inesquecíveis. Uma canção que compõe uma fotografia auditiva, como bem definiu Nara, com “o papel de primavera”.
Esse papo todo me levou a pensar que, “fora” do ciberespaço capitalista que parece consumir a tudo e a todos, ainda existe um universo infindável de obras a se resgatar, raridades a serem descobertas e história a ser escrita. E isso tudo passa pela mídia física, mas também não pode ser inteiramente definido por ela. Eu não tinha o disco de Nara Leão que, afinal, é bem raro. Sequer sabia da existência dele. Mas bastou uma gravação em um CD “perdido” na minha coleção para que eu conseguisse apresentar aqui esta linha de raciocínio, que me levou de uma coletânea aparentemente genérica a um disco esquecido de Nara Leão de ’77. Disco que, para além do que possa a ser dito sobre sua qualidade, guarda o feito de apresentar algumas versões altamente popularizadas em outros lançamentos. João e Maria gravada aqui, por exemplo, circulou bastante em coletâneas do Chico Buarque, e acabou se transformando, talvez, na grande versão da canção.
Por ora, sigo com Fotografia em repeat. Amando o fato de que ainda conseguimos usar a web para caçar tesouros esquecidos como este (com o auxílio dos catálogos físicos, se necessário). Tem coisas que a gente não pode deixar morrer. Hábitos, paixões e canções, por exemplo.
*EDIT urgente: ontem chegou à minha atenção, pelo grupo dos nossos apoiadores, o caso de uma cantora folk britânica que teve um álbum publicado em seu nome, mas que na realidade foi feito por uma IA. E foi igual o jabuti em cima da árvore. Ninguém sabe como o disco foi parar lá, ou quem fez a gracinha. Mas aconteceu. Então agora, além de termos que nos preocupar com obras históricas que podem ser alteradas arbitrariamente, temos que nos preocupar também com a IA literalmente roubando nossas identidades e se passando por nós. Como se já não bastasse as empresas da big tech poderem (potencialmente) utilizar todas as músicas que subimos para a web como ” matéria prima” pra alimentar IA generativa. Eu prevejo, para um futuro próximo, uma separação entre o virtual e o físico mesmo. Via web, nessa web aí que estamos vendo, não vejo muitas alternativas para escapar da distopia alienante que nos atinge.



