A loucura das guitarras japonesas

Uma obra-prima do underground japonês, comandada por Hisako Tabuchi.

O rock underground japonês é uma gaveta que não pode ser aberta impunemente. Mas eu o faço, porque não tenho muito medo do perigo. Comecei em abril do ano passado em nossa newsletter mesmo, contando a insólita e inacreditável história do grupo Les Rallizes Dénudés. Não me aprofundei ali. Afinal, a grande piração dos Les Rallizes é, justamente, não ter uma discografia propriamente disponível a ser explorada.

Mais ou menos na mesma época, o dedeco (Paira) me apresentou outra banda legendária japonesa, a Number Girl. Essa mais “acessível” e facilmente rotulável. Qualquer bio que vocês encontrarem sobre a banda na internet citará as evidentes influências: Pixies, Hüsker Dü, Sonic Youth. Há uma parte considerável do indie rock japonês que se dedica a adaptações (para evitar um termo menos lisonjeiro) dos cânones norte-americanos, e a Number Girl talvez seja uma das mais célebres exemplares dessa tendência. A banda encontrou um caminho mais original a partir de seu terceiro disco de estúdio, o Sappukei (com produção do David Fridmann, que trabalhava à época com os Flaming Lips), mas suas origens remontam ao rock alternativo rápido, pesado e sujo que marca, em especial, os Pixies – indubitavelmente sua maior influência.

Mas já haviam pontinhas de singularidade nos primeiros trabalhos da Number Girl. Em específico, nos sons da guitarra-solo. Se nos Pixies a segunda guitarra conta com detalhes muitas vezes contidos e bastante formais, em Number Girl a loucura toma controle. E isso se deve à genialidade de Hisako Tabuchi, sem dúvida a maior (e mais imprevisível) guitarrista que já vi tocar. Com o desmembramento inicial da Number Girl em 2002, a artista partiu para um projeto solo, onde assume vocais e guitarra. A banda se chama Toddle. E esse texto, mesmo que tenha se alongado muito até aqui só estabelecer o contexto, é sobre o primeiro disco do grupo, chamado I Dedicate D Chord.

O disco é todo cantado em japonês, e desafia qualquer associação mais rígida com o rock alternativo americano. Com uma voz deliciosamente desafinada e guitarras erráticas ao extremo, Hisako abre um arsenal de canções meio indie-punk aparentemente inofensivas, como na sequência Bakadana-World Wide Waddle-Wanderlust. Há mais ali, no entanto, e que se manifesta na faixa título e, mais acintosamente, no clássico Oyster. Uma composição perfeita, de estrofe-refrão-ponte, e que nos apresenta tudo o que os primeiros anos dos 00s tinham para nos oferecer; os dedilhados agudíssimos (meio emo) da ponte; a sujeira de duas guitarras em concerto; uma letra etérea; um refrão incansável e, claro, um solo de guitarra inesquecível na segunda parte.

É, para mim, o melhor solo que já ouvi em uma canção, e a minha afirmação certamente desafia qualquer parâmetro técnico. Como é possível ver nas muitas apresentações ao vivo de Number Girl e Toddle espalhadas pelo YouTube, Hisako não é virtuosa. Ela apenas sabe a forma exata de tensionar as cordas e produzir ruídos que parecem se confundir com os de uma garganta humana esganiçada. No solo de Oyster isso está registrado para a posteridade.

O problema com Toddle, assim como com tantas e tantas outras bandas “perdidas” na era das trevas que estamos vivendo, é a falta de informação disponível sobre a banda. Há alguns vídeos de Hisako Tabuchi no YouTube, mas a maioria deles em japonês, sem legendas. Em um dos poucos legendados (em inglês), Hisako fala do seu gear, e sobre como encontrou a jazzmaster que toca há mais de 25 anos. Certamente Hisako nos oferece um enorme universo a ser explorado. E minha recomendação, veemente, é que vocês comecem por I Dedicate D Chord, álbum de estreia da Toddle, de 2005, e um dos plays mais obsessivos do meu catálogo desde o ano passado.

Ouça I Dedicate D Chord Aqui