Sempre em frente, Panda Bear finca seu som em camadas mais terrestres

O Reggae-Dub reinventado em Noah Lennox. Nosso (sempre certeiro) Panda Bear.

“Sou um grande fã de reggae, grande fã de dub, e estou sempre procurando formas de fazer algo que se sinta como reggae sem ser explicitamente reggae (…)”Noah Lennox.

Se álbuns tivessem lápides, isso é o que estaria escrito na de Sinister Grift, novo trabalho de Noah Lennox, mais conhecido como Panda Bear. É até sacanagem resumir a potência sônica do álbum a um único universo estético. Mas quem conhece Panda Bear há tanto tempo como eu tem essa liberdade. Afinal, já sabemos que o artista sempre mergulha em um universo sonoro bem definido para interpretá-lo de sua maneira sempre muito singular.

É o que ele faz em sua obra pivotal, o Person Pitch de 2007 (disco que disseco neste texto de 2023). Nele, Noah parte de texturas etéreas construídas por inúmeros samplers em sucessão e justaposição, inserindo por cima deles melodias “beach boyanas” enfiadas em reverb. É uma imersão inusitada, sem limites definidos. A graça era essa. Massas de som extremamente abstratas, com picos de melodias angelicais e refrões acertadíssimos emergindo deste espaço meio aéreo de paredes.

Noah não ficou parado nesta fórmula. Nem em sua vida pessoal. Mudou-se pra Lisboa (casando-se com uma lisboeta), teve dois filhos. Suas experimentações foram ganhando um corpo menos fluído, mais focado em sínteses eletrônicas. Trabalhou com (e produziu para) deus e o mundo no processo; Sonic Boom, Solange, seus amigos de Animal Collective. Seus discos solo foram sempre seguindo como registros marcantes de sua trajetória pessoal e de suas buscas estéticas. Até que, em Sinister Grift, o artista se rendeu de vez ao universo das texturas jamaicanas (com o qual sempre flertou, diga-se) para amarrar seu melhor conjunto de canções desde 2007.

É um álbum espetacular. Já na primeira faixa, Praise, notamos os grooves influenciados por sons jamaicanos, mas amarrados a uma estrutura melódica quase que de Doo-Wop. É como se seu próprio Person Pitch se encontrasse com Lee Scratch Perry. Mas a produção não é do mestre jamaicano, e sim de Deakin, seu amigo de Animal Collective. Rivka Ravede (baixista e vocalista da Spirit Of The Beehive e sua atual namorada) contribuiu na ponte com backing vocals cirúrgicos – note-se que é de Rivka, também, a bela pintura que ilustra a capa.

As vibes mais propriamente “reggaeiras” do disco estão, claramente, em 50mg e Just as Well (canções marcantes do conjunto), mas espalham-se pelo disco todo em pequenos detalhes de produção- reverbs nas caixas, linhas de baixo, melodias, etc. A primeira metade do disco, super pra cima, ainda tem Ends Meet, canção que conta com Geologist e Avey Tare (também de Animal Collective). É uma canção que poderia facilmente ter saído do último disco da banda, o excelente Time Skiffs, de 2022. Parêntesis? Temos: Animal Collective é, para surpresa de ninguém, a minha banda favorita dos anos ’00s, e fiz um Raio X sobre eles aqui.

Na segunda metade do disco, Noah nos surpreende, como se ainda precisasse. Desacelera o ritmo e caminha por universos mais soturnos. Venom’s In, lenta e climática, arrebata com uma melodia que é quase devedora de Tears For Fears– há quem diga que é McCartneyana, de tão amarrada, suave e melódica com as tensões certas, nos lugares certos. Uma das melhores músicas que Panda Bear já nos entregou.

A seguir, o álbum abre espaço para uns drones mais climáticos, com Left In The Cold e Elegy For Noah Lu, que chegam a lembrar os momentos de loops catárticos (mas lentos) de Daily Routine, canção do Panda Bear do álbum Merriweather Post Pavillion, do Animal Collective. Toda essa tensão meio etérea parece vir só para nos preparar para a canção que fecha o álbum: a maravilhosa Defense. Nela, Noah se junta à Patrick Flegel (Cindy Lee), que empresta sua inconfundível guitarra para a construção de uma canção tipicamente Panda Bear.

É a canção de “assinatura” mais clara do disco. Mostra o “velho” Panda imerso em texturas menos aéreas. Mais terrestres e maduras. Mas nunca óbvias, porque Panda Bear não gosta da obviedade. Defense, com os dois acordes que sustentam 90% da canção, atinge novamente vibes meio big pop (em especial quando as guitarras de Flegel aparecem). É McCartney? Tears For Fears? É Noah Lennox: um dos maiores compositores de sua geração. Para nossa sorte, um dos únicos de seu tempo que se mantém andando sempre pra frente, sem abdicar de suas convicções estéticas.