
Preciso primeiro me retratar. 2024 acabou, fechei minha lista dos destaques do ano e uma ausência profunda passou a me atormentar já em 2025, quando me dei conta da gafe. Trata-se do disco novo da banda gueersh. Não só um baita disco como, retroativamente, de longe meu disco favorito do ano passado (entre gringos e nacionais, diga-se).
A banda dispensa apresentações, pois já as fiz neste texto de 2023. E o mais curioso é que, nele, eu disse que a banda ainda tinha um caminho a percorrer para captar, no estúdio, toda a energia explosiva de suas apresentações ao vivo. Pois é. Não tem mais. Gravado quase que inteiramente ao vivo, interferências na fazendinha mostra a banda à vontade, quebrando tudo em um estúdio no meio do mato. Mas engana-se quem pensa que o trabalho é todo formatado pela ideia de improviso ou de jam. Não é apenas isso, e a pedra fundamental para compreender a maluquice sonora da gueersh neste disco parece ser Vaninha Perereca, a canção central, e obra-prima do trabalho.
Com longos 13 minutos e 3 movimentos, a canção aponta para a associação clara com o Krautrock: motorik beat, baixo em loop em cima de uma mesma linha, elementos de guitarra entrando e saindo (criando as tensões que não são nunca progressivas, mas permanentes), etc. Se formos parar pra pensar nos cânones do gênero, como Krautrock (canção da Faust) ou Hallogallo (da Neu!) é possível dizer que há até uma certa rigidez na estrutura daquilo que convencionamos chamar de Krautrock . Certamente, Vaninha Perereca tem algo disso. Mas também tem uma imprevisibilidade maior, fruto, talvez, da essência maluca mesmo (de improviso e risco) que a banda carioca abraça com muita coragem. E isso os associa a outros projetos, que andam adaptando as ideias do Krautrock muito bem a um contexto contemporâneo. Vocês sabem quem são, porque falo muito delas aqui (como por exemplo das chinesas Fazi e Backspace, ou da argentina Winona Riders). Mas não é só de Vaninha Perereca (não me canso de repetir o nome da canção, pois ele me traz um sorriso toda vez) que vive o disco.
Antes mesmo da experiência transcendental da canção (que é apenas a terceira faixa), gueersh nos agracia com uma fábrica de dissonâncias com Brasileirinhe. A canção oferece uma mistura inusitada entre Jards Macalé e Primus (quando era bom), lembrando também aquela maluquice de guitarras que Kurt nos oferece em Milk It (do perfeito In Utero), quando ele parece “catar” aleatoriamente notas de guitarra que claramente não combinam. David e Guilherme, os guitarristas, parecem fazer coisas assim o disco todo – e isso é foda. O disco ainda tem lugar pra canções mais “normais” e cantaroláveis, como Djo Djo Piranha e Marra (o single óbvio, que acabou de ganhar clipe). Mas o que sempre me chama atenção é como as maluquices se concatenam de maneira quase concretista. E isso fica claro também em algumas letras, como na da própria Brasileirinhe:
“Bando de pingola bamba, bora revirar o coco ae / Para de pagar de pango / Solta o cão chupando manga”. Isso cantado de forma quase debochada pela vocalista e tecladista Lívia, é de uma potência absurda.
Por falar em cão, há também o Caxorrin (de “cabelinho punk” e que “deixou todo mundo de queixo caído“), que fecha o disco com chave de ouro. E que baita disco.
Em letra, arranjos e performance, este talvez seja o trabalho mais livre e arriscado que veio ao mundo no rock nacional em 2024. Ou ainda, nos últimos anos, para ser bem honesto. O fato dele ainda não ter tido sua repercussão ideal (se é que terá, pois nossa crítica ainda abaixo da crítica) ainda nos impulsiona a refletir, divulgar e enaltecer o trabalho. Até porque, a gueersh é a banda do Tempo Elástico. O que é a dimensão de um ano perto do que eles andam propondo?
Dito tudo isso, é preciso lembrar que o clima de banda, tão bem captado pela gravação, provavelmente deveu-se ao clima rural em que a banda se meteu de verdade. Gravaram tudo em um estúdio caseiro (chamado Emissor Estúdio), em um sítio de permacultura em um interior do estado do Rio de Janeiro (em Sana, distrito de Macaé). As músicas foram gravadas com todo mundo tocando junto, com um time até grande: o quinteto, com participações especiais eventuais. A ficha técnica está toda lá na página do disco no Bandcamp, e recomendo que ouçam por lá, apoiando a banda se quiserem!
No mais, nunca é tarde divulgar o single de Marra, que ganhou um videoclipe bem legal, abaixo:
E você pode ouvir o disco onde preferir: