A obra prima da menina que roubava livros

Em seu terceiro disco, Ebony lança uma pedrada. Uma obra madura, desafiadora e ... nova. AOTY?

“Eu sei que é confuso uma garota é o melhor rapper vivo

É com essa ousadia que Ebony encerra seu terceiro disco. Indo de trás pra frente, percebemos que a artista encerra ali uma história, que começa na faixa título, KM2. Nela, um cenário é construído: samplers que registram a violência policial em Queimados, bairro da Baixada Fluminense (apelidado por Ebony como KM2). Os samplers são sustentados por um beat de funk com um colorido meio ambient. A canção, produzida pela misteriosa (e genial) Larinx, capta nossa atenção. E como capta.

No que se segue, Ebony consegue, em 22 minutos, romper várias barreiras da (viciadíssima) cena do rap nacional. Ela já tinha colocado todo mundo na parede com aquela diss maravilhosa. Na ocasião eu escrevi sobre o feito, e notei que Ebony já havia se destacado na cena por um simples motivo: ela sabia rimar. E muito. Logo depois veio o álbum Terapia, que aprofundou minha atenção. Mas ainda havia ali algo do zeitgeist que não deixava de incomodar os mais críticos. Talvez uma inclinação à hipersexualização, pouca diversidade temática e de beats. Uma construção, enfim. Eu não esperava por uma pedrada tão amadurecida (e tão cedo) quanto este KM2, pouco tempo depois.

O novo disco tem de tudo: conceito sólido, letras safadas, letras confessionais, flows inesperados e habilidosíssimos (isso já se esperava), refrões melódicos (isso eu não esperava). Tem até uma única participação especial (e bota especial nisso): Black Alien. O artista carioca é um dos poucos que não foi fuzilado pela jovem rapper em sua diss, e compartilha com ela uma canção magistral, Vale do Silício (onde Ebony se arrisca cantando também, e não decepciona). O disco ainda leva bem à frente a tendência atual da fusão de beats, entre o trap, o funk, o ambient e até electro e house – como em Hong He, que é um absurdo, com uma letra igualmente absurda. Aqui, cabe um parêntesis:

“Danço MPB no baile MTG”.

Drope uma ref. pra Rita Lee e saia. Isso é um disco de rap. É um novo rap. Que já superou, inclusive, qualquer conflito com outros gêneros. É isso tudo, e foda-se.

Não há tiro no escuro nesse disco. Ebony sabe o que faz. Se Hong He vai até o house, Festas e Manequins rasga um beat raivoso eletrônico, enquanto ela lacra: “Ela vai no médico e a ref é uma foto minha”. Egos inflados são importantes para o rap, como todos sabemos. Mas também é importante se expor, como Milena (seu nome de batismo, que ela dropa do nada em Vale do Silício) faz em tantas faixas. Falando honesta e ternamente sobre sua infância, seu bairro, e tudo aquilo que desperta sua libido, que parece ser imparável.

“Não tinha dinheiro, então, criança, eu roubava livros”.

Dá pra perceber. Ebony é uma enciclopédia.

E KM2 é, até aqui (ao menos pra mim) o melhor álbum nacional do ano.

Disparado.