
Algumas perguntas a gente vai fazer sempre por aqui. Sem repostas contundentes e fáceis, mas com algumas hipóteses de trabalho.
*Por que será que o rock nacional, após a efervescência criativa dos anos 70 e o boom comercial dos 80, não conseguiu se consolidar no mainstream – como aconteceu, por exemplo, na Argentina com o rock deles, a partir de um movimento similar nas décadas de 70 e 80?
Há algumas hipóteses. Uma delas diz respeito ao sempre indigente “estado da crítica” em terras nacionais. Os Paralamas do Sucesso sofreram gravemente com isso; uma “crítica” que nunca foi crítica. Foi, antes, animadora de plateia, engajada em promover ataques pessoais e, simplesmente, detonar os artistas sem qualquer embasamento amparado pelo pensamento verdadeiramente crítico.
Mas antes de mergulhar nisso, é bom lembrar do contexto “RockBr anos 80″- ainda que isso seja meio que chover no molhado. É difícil imaginar isso hoje, mas havia na década uma verdadeira disputa para ver qual era a maior banda do Brasil. Os Paralamas pareciam estar sempre à frente; eram singulares, modernos, experimentavam no estúdio e, antes de tudo, sabiam emplacar hit atrás de hit– inseridos em álbuns que não eram meros enchimentos para os hits, mas que tinham valores conceituais imprescindíveis. Isso tudo já seria prato cheio para que a crítica nadasse de braçadas, abraçando o grupo como o “vencedor” da disputa subjetiva. Mas aconteceu o contrário. Fazer sucesso no Brasil seria, como disse Tom Jobim, “motivo de ofensa pessoal”? Ou nossa “inteligência” é apenas historicamente incapaz de nos autopromover, contornando o histórico viralatismo? Vejamos.
Em 1991 Os Paralamas deram uma guinada criativa. Lançaram Os Grãos, disco com mais camadas sônicas. Mais denso, introspectivo e com fortes conexões com o Rock Argentino- fato atestado pela brilhante versão de Trac Trac (Track Track) de Fito Paez, que integra brilhantemente a tracklist. Apesar de sua impressionante qualidade musical, o disco foi um fracasso de vendas (no Brasil, porque na Argentina foi duplo platina). Só que a crítica … ah, essa deveria saber melhor. Diante de um fracasso de vendas, o mínimo seria tentar mergulhar melhor em um disco que, para o próprio Herbet, era o “mais legal da banda” e que, infelizmente, patinava nas vendas. Mas não. A crítica caiu matando, e um episódio em específico se destacou. O polemista disfarçado de colunista, Luís Antônio Giron, da Folha de São Paulo, resolveu destruir o disco, baseado em ataques pessoais, sem nenhuma análise musical, ou algo remotamente próximo disso.
Eu não consegui acesso à “crítica”, a não ser a partir de um print tosco que tirei de um vídeo excelente do Canal de Júlio Ettore (e que linko abaixo). Do print, eu infelizmente consegui ler a peça de propaganda enganosa disfarçada de crítica. Nela, Giron usa “argumentos” como o de que a banda teria sido escanteada pelo ego de Herbert que, concentrando demais a produção, teria se tornado um “galã romântico” de “voz empolada”. Pura baboseira. Giron ainda mente, ao dizer que Liminha, que coproduziu o álbum com o Herbert, havia tocado vários instrumentos no disco. Herbert precisou responder o texto de Giron. Esclareceu que Liminha não havia tocado nada além de algumas (poucas) frases de guitarra no disco, e denunciou o dispositivo enganoso que é utilizar subterfúgios argumentativos para travestir de “crítica” algo que é apenas ataque de ordem pessoal.
Sobre a resposta de Herbert, ele também haveria utilizado o famoso ditado popular que diz que “respeito é bom e conserva os dentes“. Eu não consegui confirmar essa informação nem nos Deep Searches da IA, mas ela veio da nossa biblioteca ambulante, o Márcio Viana. Atualmente, confio mais na memória do nosso estimado colunista do que nas pesquisas virtuais, então está dito.
E a treta Giron-FSP/Paralamas ainda piora. Em 1994 a banda lançou o brilhante Severino, álbum de sucesso absoluto na América Latina, impulsionado pelo brilhante single de Dos Margaritas (lançado também em espanhol). O disco trazia Phil Manzanera (Roxy Music) na produção, e mergulhava em sonoridades regionais mescladas a um pop rock eletrônico sofisticadíssimo (a cara da banda). Giron detestou, decretando ser o pior álbum da banda. Ainda aproveitou para desfilar um show de viralatismo anti nacional e anti latino americano, desdenhando do sucesso da banda entre nossos vizinhos (aludindo a um “chá de cucarachas”). Um desserviço. Este texto vocês podem ter a infelicidade de ler na íntegra aqui.
Mas a resposta, desta vez da banda toda, foi redentora. Esmagaram a “retórica requentada” de ataques e a ausência de demonstração de pensamento que levasse ao julgamento (achar “bom” ou “ruim”). Ainda meteram a carteirada, lembrando que Os Grãos foi duplo platina na Argentina, e Severino já era ouro antes mesmo de chegar ás lojas no país vizinho. A banda também havia tocado para 90 mil pessoas em um concerto em La Plata. Ao desqualificar Os Paralamas, Giron joga no lixo também o julgamento do público argentino?
O que me leva a outras indagações: como podem Os Paralamas terem atingido seu ápice criativo com dois álbuns mais “experimentais”, vendido horrores na América Latina e, internamente, terem sido descartados desta forma (tanto pelo público como pela crítica)? Será que uma coisa não puxa a outra? Para a banda, a resposta parece ser positiva, de acordo com o seguinte trecho de sua resposta:
“Não precisamos falar dos efeitos perniciosos que esse tipo de estratégia jornalística desencadeia no Brasil, sendo a Folha um jornal formador de opinião. Pior para os leitores (que ficam sem nada de interessante para ler), pior para a cultura brasileira”.
Certamente. Tivesse a “inteligência” brasileira apoiado a fase mais ousada da banda, após uma década inteira de sucessos, talvez seus melhores álbuns não tivessem amargado vendas tão baixas. E talvez a banda não tivesse ficado estigmatizada como um fenômeno “folclórico” dos anos 80, o que contribui até hoje para que muitos achem que Os Paralamas são apenas uma “banda de reggae” (como já ouvi muitas pessoas falarem). Se os Paralamas do Sucesso não são, no Brasil, o que Soda Stereo é na Argentina, isso só diz respeito à nossa própria burrice, orientada por aqueles que deveriam produzir pensamento e promover o que realmente interessa.
Giron, provavelmente formado na “escola Olavo de Carvalho” de distorção de pensamento e de ataque disfarçado de “filosofia crítica”, passou. A obra dos Paralamas, com todas as suas nuances e inovações, continua. E vejam que a menção à Olavo não é nada acidental. O ideólogo da nova direita brasileira, antes de se projetar a partir de nichos virtuais obscuros, teve um enorme megafone para transmitir suas ideias: a Folha de São Paulo.
É impossível pensar um país enquanto tanta gente se engaja em tentar destruir o que temos de melhor.
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Segue, abaixo, o vídeo de Ettori que inspirou este texto. Mil agradecimentos também ao Márcio, que ajudou profundamente nesta pesquisa.
Para quem ainda não conhece bem Os Paralamas do Sucesso, eu e o Márcio já fizemos um guia completíssimo aqui, em 2020. Passamos por toda a discografia da banda. Não deixe de conferir.