Nunca foi Vaporwave. Sempre foi roubo

O sampler: do regurgito da história da música ao cânone criativo.

2025 está sendo muito marcado, pra variar, por revivals, comemorações de 30/35 anos (no eterno retorno aos ’90s) e pelo debate sobre a questão de gênero na música. É um pouco em torno destes três assuntos que eu tropecei novamente na “música de sampler” e, por conseguinte, no meu próprio trabalho à frente do The Innernettes.

Nem eu sabia, quando começamos a empreitada deste projeto em 2014, mas toda a linhagem da “música de sampler“, que eu achei ter sido derivada das experimentações eletrônicas universitárias de metade do século passado – com sua expressão máxima em obras paradigmáticas como Paul’s Boutique, dos Beastie Boys, e Endtroducing, do DJ Shadow –, teve um capítulo marcante com a ideia de Plunderphonics, defendida pelo compositor John Oswald, em 1985.

John escreveu este artigo maravilhoso, explicitando, há 40 anos atrás, o que eu sempre comentei sobre o trabalho com samplers: a gravação é, a um só tempo, documento e matéria-prima que funciona como recurso criativo. A única barreira entre as duas definições sendo os direitos autorais. Daí a ideia de plunder (saque). É sobre roubar excertos de outras canções, como desafio, rebeldia ou simples homenagem. O curioso dessa história toda é que precisaram várias décadas de desenvolvimento da “música de sampler” para a ideia de Plunderphonics ser reivindicada pelos crackudos da internet como mais um subgênero – coisa que não é. Hoje existem charts no RYM de Vaporwave/Punderphonics (como se fossem uma coisa só) e as experimentações originais de John Oswald foram compiladas em álbuns pela internetcomo aqui.

O que o Vaporwave teve de especial em toda essa linhagem é que, ao menos em sua gênese (muito provavelmente pelas mãos de Daniel Lopatin, aka Oneothrix Point Never), o subgênero utilizou-se de samplers bem específicos de uma “cultura FM” oitentista, e de um universo estético que reimaginou o consumismo dos ’80s/’90s como regurgito de uma geração já destituída da ideia de bem-estar social por meio do consumo – é por essas e outras, inclusive, que é particularmente bizarra a apropriação do Vaporwave por grupos de direita radical, como os anarcocapitalistas, que viram como elogio o que sempre foi uma crítica até meio desesperada e rebelde.

Essa “fórmula” começou a gerar uns frutos particularmente incríveis – todos lembrarão da DJ Ramona (Macintosh Plus). A forma específica de Lopatin manipular os samplers introduzia o pitch como ferramenta criativa, capaz de levar os trechos originais ao cúmulo da distorção. *Alerta de auto elogio*: com toda modéstia à parte, eu acredito que o The Innernettes levou essa ideia ao limite em seu 1º álbum. E um exemplo disso está na canção abaixo.

Na época em que lançamos isso pouca gente pode ter se dado conta, mas esse experimento é inteiramente derivado de uma canção famosíssima de Fernanda Abreu, que agora faz 35 anos e é objeto de diversas comemorações: Você Pra Mim, do clássico Sla Radical Dance Disco Club, de 1990. O fato da canção do The Innernettes ter passado batida por todos os scans de direitos autorais de diversas plataformas da web é um sinal muito claro de que as técnicas do Plunderphonics podem resultar em canções totalmente novas a partir de gravações documentadas. Quem ouvir a música original, abaixo, entenderá exatamente o que fizemos: as repetições produziram uma outra circularidade, o refrão foi desmontado, onde havia refrão (com outro refrão sendo “imposto”), os pitches alteraram tanto o campo harmônico da canção que seu “clima” mudou totalmente – do dançante “soft” da original a um clima meio soturno, denso e melancólico da nossa música. E por aí vai.

Era um roubo. Neste caso, oriundo do desejo de fazer uma homenagem, porque amamos a canção de Fernanda. Quisemos desmontá-la e destruí-la para, de alguma forma, preservá-la. Agora que as comemorações do SLA estão a todo vapor, eu exponho aqui a nossa “brincadeira”, porque eu sei que não há mais como derrubá-la. Nossa música, presente no 1º disco do The Innernettes, o Hi Mom!, já está espalhada pelo mundo, tanto virtual quanto fisicamente, em fitas cassete pelos EUA, Brasil e Japão.

O The Innernettes infelizmente não integrou o cânone do Vaporwave/Plunderphonics produzido pelos crackudos de RYM. mas talvez seja descoberto em alguns anos, quando a linha da “música de sampler” for redescoberta e rediscutida. Hoje em dia, depois de uma década absolutamente imersa em excesso e na virtualização completa de tudo, a cada dia que passa mais artistas (em especial músicos) buscam se expressar pelos caminhos dos neandertais: fazendo músicas a partir do zero, com instrumentos reais em gravações cada vez mais “puras”. É um backlash, certamente – embora obras de 2025, como Earl Sweatshirt e Dijon estão aí pra provar, ainda bebam dessas tradições eletrônicas de forma bastante criativa e singela.