Passei metade do ano no estúdio (não em silêncio, diga-se). Ao sair do aquário (literalmente), já me deparei com lançamentos impressionantes. Não perdi muito tempo, como vocês bem sabem, com os hypes óbvios. Essa lista vai decepcionar os fãs do pop da OTAN (Kamala is Brat, não é mesmo?). E eu não tô nem aí. A minha música vai cada vez mais pra esquerda e, curiosamente, este ano acabei dando mais atenção aos nacionais. Primeiro, porque estou prestes a lançar álbum e quero saber o que anda acontecendo no geral. Segundo, porque depois de tanto tempo tateando aqui e ali na cópia e batendo na trave, a música nacional (especialmente o indie) parece ter se reconciliado com seus melhores momentos. Excelente notícia. Nos gringos, tentei ir na base do coração. Ouvi poucos latinos de expressão esse ano, e alguns chineses espetaculares (dentre os quais um invade meu top 10). É sempre dificílimo elencar só 20 internacionais e 10 nacionais. Então, com muito esforço, este ano resolvi aumentar minha lista de nacionais e deixar nos gringos só aquilo que me comoveu de verdade – a ponto de, ao menos, me fazer gastar mais de três audições.
Top 10:
10. Backspace 退格- Outside of Change 变化之外
Trata-se de uma das bandas mais singulares do indie chinês. Trabalham naquela cruza (já) tradicional no rock chinês entre krautrock (motorik beats) e escalas melódicas tipicamente orientais, de uma forma bastante explosiva. É um álbum progressivo e mágico, que sabe lidar com repetição e progressão numa medida muito equilibrada. Não à toa, o disco propõe uma espécie de vivência temporal – dentro e fora da mudança, como o próprio título nos anuncia. Uma pequena bomba a ser degustada devagarinho.
9. Nilüfer Yanya- My Method Actor
Depois do petardo de dois anos atrás (o álbum Painless, 2022), esperava-se muito de Nilüfer. E ela entregou. É um disco diferente, mais acústico e de cadência lenta. Ainda assim, pode ser incendiário, como nas canções Method Actor e Like I Say (I runaway). A falta de equilíbrio entre explosão e calmaria, porém, acaba arrastando um pouco o disco em sua segunda metade. Mas segue sendo um dos discos lírica e melodicamente mais marcantes do indie gringo este ano.
A banda argentina nos apresenta aquela mistura incrível entre Pixies e Spinetta que só os hermanos (ou, mais ainda, as hermanas) nos proporcionam. Sed Peligrosa começa o disco de uma forma que quase me perdeu, com resquícios do synth pop datado que vira e mexe aparece por aí (não é mesmo, magdaleners??), e que marcou o álbum anterior da banda. Mas na segunda metade (a partir de um solo de guitarra emocionante), a canção toma vergonha na cara e se resolve na fórmula descrita no início deste texto. E isso com uma assertividade impressionante, nos mostrando que os resquícios a que me refiro integram, na realidade, a base pós-punk que se ouve mais “crua” e marcadamente na ótima Tengo Un Plan. O disco é todo explosivo e não tem uma única faixa de gordura. Outros destaques são Pagando de Más (a melhor do álbum e uma das melhores do ano do rock alternativo latino), Mala Influencia, Disimular e a espacial e densa Cuida Tu Rareza. Um disco curto, poderoso e impecável. Pra se furar no repeat.
7. MJ Lenderman- Manning Fireworks
O charme inestimável do indie-folk de vozinha desafinada realmente arrebatou muita gente em 2024. MJ Lenderman, depois de colaborações marcantes com projetos e bandas como a Wednesday (ver nossa lista do ano passado), lança um debut impressionante. De cara, acessa a tradição folky-alternativa que liga Neil Young a Pavement em uma trajetória relativamente direta. Por falar em Neil, é ele que veio à tona imediatamente quando ouvi Joker Lips (um dos destaques do disco) pela primeira vez. A música evolui com uma pedal-steel entregando um riff matador, e mostra todas as ferramentas de MJ como compositor e intérprete. Mas são muitos os demais destaques do álbum. Rudolph, Wristwatch e On My Knees seguem essa linha Neil Young/Crazy Horse era, com uma energia renovada. Já minha favorita do álbum, She’s Leaving You, sustenta estrofe-ponte-refrão em uma única progressão, super simples, com um solo de guitarra arrebatador na última parte. You Don’t Know The Shape I’m In, mais introspectiva, traz uma versatilidade importante para um disco que, às vezes, pode soar meio de “uma nota só”.
Dummy é a melhor surpresa do ano pra mim. A banda começou fazendo shoegaze, mas rapidamente apresentou um segundo álbum baseado em novos horizontes. Fugiram da onda (inexplicavelmente duradoura) do shoegaze e miraram no madchester, e em outros atos eletrônicos mais “synthy” dos anos 90. É óbvio que, a partir da maravilhosa Soonish…, o que fica evidente é que Dummy se aproxima de uma banda dos anos 90 que fez exatamente este percurso (do shoegaze a um indie big pop, cheio de synths): Stereolab. Mas seria bem preguiçoso definir este álbum como uma cruza entre Happy Mondays e Stereolab. O repertório deles vai além. A sequência Opaline Bubletear/Blue Dada é prova disso. Uma intro com direito a sax e ambientações dá lugar ao indie-pop de synths matador da segunda parte, com um refrão que só chega no final, mas que te faz balançar a cabeça como nas canções mais agitadas de Mars Audiac Quintet, da pioneira Stereolab. Mais índices da diversidade que Dummy acessa podem ser observados em Minus World (essa com guitarras à la Television no final) e Nine Clean Nails, que foge das referências já citadas para mostrar uma pegada meio Pixies/TV On The Radio. O disco é, enfim, um catálogo de referências incríveis para quem gosta (como eu) de ficar tentando caçá-las. Mas é, sobretudo, um disco pra ouvir curtindo muito.
A lenda indie Phil Elverum (Mount Eerie, The Microphones) começa seu novo álbum dizendo: “I saw lightning last night”- “eu vi um raio noite passada”. E termina dizendo: “I need new eyes”- “preciso de olhos novos”. Não dá pra dizer exatamente o que ele vê, pela trajetória verborrágica e caótica dos mais de 80 minutos do álbum, recheado de reflexões brutalmente honestas, diversionismo, muito rock e ambientações mágicas. Em certo momento, ali pela metade do trajeto, ele conversa com um peixe. Em outro, ele apela à noção de que vive em um território ocupado, que na verdade pertence aos povos nativos, massacrados- isso acontece em um dos momentos mais bonitos e roqueiros do álbum, na incrível Non-Metaphorical Decolonization. Musicalmente, Elverum adorna toda essa trajetória lírica (cantada mas, principalmente, declamada) como se fosse a trilha de um filme. Cria ruídos de passagem, sons ambientes de fundo, proto-canções. Tirando momentos em que seu talento melódico parece prevalecer (como em I Walk), é difícil achar trechos cantaroláveis aqui. Phil prefere nos capturar no universo fértil e singular de sua própria cabeça. Em certo ponto, na épica e literária Demolition, ele diz: “I’m almost 46. I have so many hopes”- “Tenho quase 46. Tenho tantas esperanças”. É lindo ver alguém, em sua meia idade, tão comprometido (ainda) com uma busca que não se furta de ser caótica, nervosa, conflituosa e irregular. Quando se atravessam as águas turbulentas do caos interior do artista, é possível ver que aquele estado é, somente, um reflexo do nosso próprio caos interior. É aí que este álbum penetra, caminhando em conjunção com nossas próprias angústias. Lindo de ouvir, e de sentir.
4. Mannequin Pussy- I Got Heaven
Este disco é um marco. Um álbum de indie rock “nervoso” e enérgico, de carga roqueira mortal, como não se via (com essa competência) há algum tempo (não, não dá pra botar Turnstile no mesmo barco). A porradaria fica mais evidente nos hardcores presentes aqui (como Ok? Ok! Ok? Ok! e Of Her). Mas permeia todo o trabalho, que apresenta uma dinâmica irresistível, indo de guitarras aberrantes e muita gritaria à harmonias angelicais e refrões melodicamente assassinos. O álbum começa em um nível muito alto (e com o roque lá em cima), com a dinâmica faixa-título. Logo em seguida, Loud Bark consolida o clima, com um loud-quiet-loud incrível, de melodias e passagens notáveis e uma letra impecável, que reforça a dinâmica das subidas que a música dá (literalmente, “latidos altos”). I Don’t Know You, um dos maiores destaques, é absolutamente aérea e parte de um cancioneiro indie-pop americano bem característico. Já Sometimes tem uma pegada mais indie-punk, que chega a lembrar Smashing Pumpkins, enquanto Softly esbarra em Hole (e é uma canção lindíssima, inesquecível). O disco lança isso tudo como se não fosse nada, com uma naturalidade de banda veterana (que são) em seu momento de maior maturidade e auto-confiança. Os vocais de Missy Dabice são marcantes, e acompanham perfeitamente a dinâmica das canções, geralmente indo de registros mais sussurrados à gritaria pura e simples. Um trabalho irretocável- não dá pra pular uma faixa. Quando achamos, em Aching, penúltima faixa, que a banda já gritou tudo o que podia e já entregou seu melhor, o álbum ainda tem lenha pra queimar. Se encerra com a magnífica Split Me Open, uma das melhores músicas do ano. Te desafio a não amar I Got Heaven por anos a fio. Em minha humilde opinião, um clássico – totalmente subestimado pela imprensa especializada, diga-se.
Diamond Jubilee é um disco experimental, processual e aberto, com canções que, quando mergulham em uma certa tradição (a de um big pop 60s em uma versão bedroom-indie, etérea e lofi), são capazes de te elevar em um sentido quase metafísico. É o caso da faixa-título, de Kingdom Come, Always Dreaming, Wild One, If You Hear Me Crying, entre muitas outras. São momentos que compensam e premiam quem atravessa, com muita atenção, deferência e, sobretudo, paciência, os percalços de uma obra, a um só tempo, irregular e necessária. É preciso, mais do que nunca, dedicar uma nova atenção à audição musical (temos dito isso com mais frequência do que gostaríamos). E discos como Diamond Jubilee tensionam tanto isso que é impossível ignorar o feito – tanto musical quanto contextualmente. O contexto, afinal, dependerá sempre da qualidade das canções. Sem grandes canções, não haveria nada a ser dito aqui. Infelizmente, o grande assunto a respeito de Diamond Jubilee tem sido justamente o contexto; o fato do álbum não estar nos streamings, o formato inusitado, etc. É preciso refletir um pouco mais sobre a música que ele contém. Sobre como trata-se de um álbum com as melhores canções que ouvimos em muito tempo, imersas em uma zona de experimentalismos às vezes enfadonha e um tanto auto indulgente. O que é prevalente? As melodias maravilhosas ou os escapismos? Tentei jogar alguma luz sobre isto em nossa Newsletter #279 (se você não assina, corre lá agora!). Por ora, apenas encerrarei com uma das reflexões presentes naquele texto; ser o acontecimento musical do ano não significa, automaticamente, ser o melhor álbum do ano. Pode ser que, no longo prazo, Diamond Jubilee seja até mais do que isso (melhor da década?). Não é possível afirmar muito agora. Apenas que se trata de uma obra múltipla e densa. Tão densa que precisa continuar sendo degustada por muito tempo.
Não dá pra limitar Being Dead à máxima da “banda que não se leva a sério”. Apesar disso estar correto, como nosso próprio Márcio Viana já destacou, penso que há mais coisas em jogo para a banda de Austin-Texas. Existe uma verdadeira linhagem que nos leva até eles, e a banda parece ter plena consciência disso, como eu destaco aqui. Logo, parece ser o caso de uma banda que leva a sério não se levar a sério. O duo (às vezes trio) mergulha nesse universo da canção esquisita, que talvez comece nos anos 60, com The Shaggs (involuntariamente), Captain Beefheart, Brian Wilson e Syd Barrett; The Raincoats (mais ou menos uma década depois); Beat Happening (mais ou menos uma década depois); Of Montreal, Gorky’s e muitas outras (mais ou menos uma década depois); e por aí vai. Cortamos para 2024, e Being Dead aparece em seu segundo álbum com um conjunto de canções “tortas”, com progressões improváveis, mudanças de tempo, riffs desconjuntados no meio de melodias que, de outra forma, seriam perfeitamente pop, etc, etc. E parece tensionar essas fórmulas, a ponto de me remeterem às experiências mais esquisitas (ainda que divertidas) de Of Montreal (em sua era Cherry Peel/The Gay Parade). É o que se ouve, por exemplo, em Big Bovine, um dos destaques do disco. Mas não faltam destaques. Blanket Of My Bone, bem no início do álbum, traz tudo o que falei até aqui, sumarizando a análise. É uma canção completamente idiota e irresistível, como todo o álbum. É certo que há canções no disco, como Nightvision, Van Goes e Goodnight, onde a esquisitice aparentemente divertida vai de encontro a uma certa melancolia. O que também é um pouco óbvio. Afinal, a tradição a que me refiro é, sempre, agridoce. Ela atinge rupturas como que involuntariamente. Não é que os artistas “estranhos” que seguem essa tradição queiram ser estranhos. É que, talvez, eles não consigam ser de outro jeito.
1. Jessica Pratt- Here In The Pitch
Em muitos sentidos, 2024 é o “ano da canção”. É como se, em meio a tanto ruído, colagem, cópia e barulho desnecessário, as canções (tradicionalmente falando, em termos de música, letra, harmonia e melodia) pedissem passagem. Jessica Pratt pediu passagem. Embalsamou as 9 canções de seu 4º álbum de estúdio em arranjos meticulosos; violão de nylon tocado com os dedos; um reverb impressionante nas vozes; percussões e baixos sutilmente agarrados em uma “parede” spectoriana. Elementos, enfim, ligados a uma longa tradição. É claro que se ouve Pet Sounds aqui, especialmente na forma como as percussões vibram e reverberam, como que escapando do próprio corpo vocal da artista. Mas isso não rotula ou limita o disco. Ele se concentra, sempre, nas canções. Quando nos perdemos nas referências, Jessica faz questão de nos sequestrar rapidamente para dentro das canções novamente, com progressões belíssimas, que quase nunca seguem um padrão. Ela encaixa pontes onde deveria haver o retorno das estrofes. Cria, como em Better Hate, quase que um continuum, apostando até em tradições melódicas brasileiras, como no empréstimo modal que faz no pós-refrão. Por falar em tradições brasileiras, há uma influência inegável de bossa nova no álbum, explícita não só nas melodias, mas também na forma como Jessica encara os arranjos não como adornos, mas como extensões sutis do corpo harmônico principal, composto por voz e violão (o que fica mais claro nas canções Get Your Head Out e By Hook or by Crook). O violão dá lugar, porém, a um piano em Empires Never Know– certamente o maior acontecimento melódico do ano. Se isso tudo impressiona, esperem ver o que acontece quando se termina o álbum pela primeira vez, com a maravilhosa The Last Year. O impulso de voltar ao disco, com mais atenção ainda, é inevitável. Qualquer trabalho que te prenda da forma como Here In The Pitch te prende é, atualmente, um manifesto de força incontornável. É difícil entender como Jessica Pratt concatenou tanta força em tão pouco tempo (nos modestos 27 minutos de duração do disco). É uma tarefa para os próximos meses, e anos, tentar entender o processo.
O nosso episódio sobre os melhores discos de 2024 a lista completa do nosso time está aqui