
Fellini será sempre uma banda atormentada pela ideia do seu próprio fim. Eles riem um pouco disso. Os fatos estão aí: O Adeus de Fellini já oferece despedidas, mesmo sendo o primeiro disco do grupo; o primeiro ensaio da banda aconteceu no dia do aniversário de morte de Ian Curtis (fato que é lembrado por eles com a dose de ironia que merece); eles se declararam sempre independentes (“independentes até do sucesso”, repete sempre o vocalista e letrista Cadão Volpato) o que, no Brasil, é uma espécie de certidão de óbito.
Faz muito sentido, após ouvirmos toda a discografia da banda, entender seus marcos iniciais como um fim. É o final, inclusive da vida, que marca a experiência e a maturação. O Adeus de Fellini parece, na realidade, obra de uma banda veterana. É certo que ainda são as referências juvenis do pós-punk que orientam artisticamente o grupo por aqui (é o que se ouve mais claramente em Boleto Pt. 2 ou Shiva! Shiva!). Mas o grupo queria mais, e parecia antecipar sonoridades do rock alternativo. Eles já abrem o disco assim, com Funziona Senza Vapore que, em música e letra, é absolutamente pra frente.
“Ninguém é perfeito. Ninguém é perfeito. Eu quis ser. Socialista!”, canta Volpato.
Que, na realidade, se auto declara uma espécie de anarquista. Lembrando, porém de um poema de Alex Antunes que dizia: “Sou anarquista de coração, outra coisa é que Lenin e Trótsky tinham razão”. Cadão não sabe se Lenin e Trótsky tinham razão (e eu acho que só Lenin tinha, e muita). Seja como for, é o espírito altamente desafiador das convenções que inspirou o brilhante poeta, Cadão Volpato, a romper com tudo, ajudando a produzir, em Fellini, a banda quintessencial do rock alternativo brasileiro.
E isso a gente consegue continuar catando dos próprios depoimentos do autor: “O rock como instituição não me interessa. Porque aí você cria esse tipo de roqueiro velho, que vive da instituição que ele ajudou a criar”. Fellini começa a desafiar a (mofada) instituição do rock já no clássico Rock Europeu. Que parece, na superfície, uma homenagem ao rock inglês que inspirou a banda em seu início. Mas que logo mostra a que veio, com um deboche iconoclasta tipicamente brasileiro, em versos como: “Agora é tarde, é tarde. Meu saco já encheu“, ou “E só dentro de um hospício se vive na América. Viver num hospício é melhor que num pardieiro“. Isso somado à levada pós-punk, torcida por versos quase declamados e o solo de trompete no final, fazem da canção um marco tão absoluto (e que chegou a perseguir a banda, como todo hit faz com toda banda) que é impossível se desviar de tal potência.
A banda segue desafiando as estruturas do rock. História do Fogo, que traz a imagem da guitarra em chamas (o rock como instituição sendo imolado?) antecipa ao menos uma década de rock alternativo – é impossível não pensar que Malkmus poderia ter composto uma canção destas em ’94, ou algo assim. Esses caras do Fellini, liderados criativamente por Thomas Pappon (saído de bandas como a Voluntários da Pátria) e Cadão, eram, acima de tudo, modernos para um caralho. Ainda são.
O disco segue em uma pressão absurda, com mais clássicos como Outro Endereço, Outra Vida, que chegou a tocar no programa de rádio de John Peel, na Radio BBC. Este episódio, uma única reprodução, rendeu uns 10 ingleses convertidos em fãs, que na ocasião escreveram cartas à banda*. A canção Cultura é outro absurdo lírico e musical, que inclusive dá o título a este texto. Cadão musica o famoso quote de Godard em O Desprezo: “quando ouço falar em cultura saco o meu talão de cheques” – frase que, por sua vez, é uma atualização da máxima fascista de Goebbles (“quando ouço falar em cultura saco o meu revólver“). As duas frases, adaptadas, integram a música em um mantra indie transformador.
Há mais faixas aqui que merecem destaque, como Nada e a inusitada Zaüne, inteiramente declamada por Pappon em alemão. Mas não preciso fazer um post de faixa a faixa do álbum. A web já está cheia de entrevistas e reflexões sobre Fellini, e quero que minha contribuição seja mais provocativa, diante de uma espécie de revisão crítica no rock nacional que temos feito por aqui em nosso site.
Eu acho, realmente, que o rock nacional nunca mais foi o mesmo depois de Fellini**. Depois que eles apareceram, pudemos finalmente concatenar a ideia de um rock alternativo por aqui. Ideia que, até meados dos anos ’90, pelo menos, seguiu sendo relativamente respeitada.
Hoje, eu sinceramente não sei se o Brasil está pronto para mergulhar de vez nos braços de Fellini – apesar de reconhecer que se trata de uma banda de culto, com razoável repercussão dentre os “nossos”. Se ninguém sacou o talão de cheques para Fellini lá atrás, em 1985, hoje então não dá nem pra conceber bandas com o mesmo espírito inventivo conseguindo qualquer tipo de suporte (de preferência sem cheques ou revólveres).
A gente bem que tenta.
Ouça aqui:
* Apenas imaginem onde Fellini poderia ter chegado se o Brasil fizesse, efetivamente, parte do mapa. Não faz. E a Fellini, imersa em uma década que foi absolutamente rentável para o rock no Brasil, esteve à margem mesmo disso. Mas hoje ela talvez só seja tão lembrada justamente por este fato. A moda passou. Fellini ficou.
** Continuarei nesta história, abordando os discos da banda um a um, conforme der pra encaixar nas minhas pautas.