
O Márcio já abriu a porteira aqui*. Agora é inevitável continuar. O pós-punk nacional guarda a marca de ser um dos primeiros movimentos do rock nacional (se é que dá pra usar o termo “movimento”) a se apresentar em diversas variações regionais. E a reunir inúmeros artistas, verdadeiramente underground, através de coletâneas.
Márcio já citou a V.A – Rock Forte, que apresentou bandas mineiras do contexto. Mas o (assim chamado) movimento se apresentou também no eixo Rio-SP, em Brasília (como todos sabemos), e no Rio Grande do Sul (tendo o DeFalla, talvez, como principal expoente). Inclusive, se considerarmos o impacto manifesto de bandas como Fellini (SP) e Picassos Falsos (RJ) na formação do Mangue Beat, é possível, talvez, apontar o contexto do pós-punk nacional oitentista como algo verdadeiramente descentralizado.
O problema é, como sempre acontece no Brasil, conseguir fazer recortes decentes, inclusive estéticos. E é para isso que serviram as citadas coletâneas, das quais podemos destacar a mineira (V.A – Rock Forte), a gaúcha (Rock Grande do Sul) e as paulistas Não Wave (em 3 volumes, com duas bandas “penetras” de RJ e Sorocaba) e Não São Paulo (em 2 volumes). Neste conjunto, excluído o “rock de Brasília” e outras regiões que podem ter ficado de fora por falta de conhecimento nosso, é possível entender o que se convencionou chamar de pós-punk no Brasil: uma junção de bandas que beberam diretamente do pós-punk gringo (inspirando-se em The Cure, Echo And The Bunnymen, etc), com bandas que poderiam ser chamadas apenas de punk (como Mercenárias) e outras que inovaram, misturando tudo (como é o caso da Chance, misturando batidas eletrônicas com bossa-nova de forma visionária, ou mesmo a Gang 90, bebendo mais da new wave– daquela forma muito singular, já célebre).
Genericamente, não seria nada absurdo trocar o selo de “pós-punk” por uma definição mais ampla: rock alternativo nacional (que floresce, não à toa, quando é o rock que dita as cartas no mainstream, a partir dos ’80).
Seja como for, foram as coletâneas citadas que deram conta, inicialmente, de tamanha diversidade – estética e regional. Mais recentemente, Bruno Verner e Eliete Mejorado (o duo Tetine) editaram a coletânea que trago hoje, chamada The Sexual Life Of The Savages, lançada pelo selo britânico Soul Jazz Records. O nome do álbum é inspirado no clássico Nosso Louco Amor, da Gang 90, banda que integra a coletânea com a canção (mais lado b) de seu primeiro álbum, Jack Kerouac.
A tracklist é impecável. Começamos com Inimigo, das Mercenárias (canção sampleada por outro duo, o The Innernettes, em canção que não vou revelar aqui**), e seguimos passando por quase todas as bandas relevantes do movimento em SP: Akira S & As Garotas que Erraram, Fellini, Patife Band (que traz aqui Poema Em Linha Reta, a brutal musicalização do poema original de Fernando Pessoa), Smack e Cabine C (que trazem conexões com Ira! e Mercenárias), Nau, projeto espetacular da artista Vange Leonel, e por aí vai. O grande destaque pessoal que tiro da coletânea, como já era pra mim, da Não São Paulo, é a banda Chance, formada por Marcinha Montserrat (recentemente falecida), José Augusto Lemos (editor, à época, da saudosa revista Bizz) e Ângelo Barcellos. A banda apresenta aqui Samba de Morro e Striptease De Madame X, já revelando um som visionário, calcado em baterias eletrônicas experimentais e uma “neo-bossa“- coisa que seria explorada a fundo anos depois. Existe uma coletânea específica da banda perdida por aí, mas isso é assunto para outro post.
É inevitável, e interessantíssimo, observar a diversidade deste recorte – que não cabe, como já disse, apenas no rótulo “pós-punk“, e nem sempre só no underground. Há bandas aqui que ou estiveram no mainstream (como Gang 90) ou que flertaram com ele (como as Mercenárias). Há também casos de bandas que calcaram, no underground, o estilo que seria projetado ao sucesso por outras bandas, que circulavam por este contexto, mas com contratos com as grandes gravadoras. É possível afirmar, por exemplo, que os Titãs “tomaram emprestado” o estilo de bandas como a Patife Band (de Paulo Barnabé, irmão de Arrigo, que é quem ilustra a capa da coletânea).
Impossível não ouvir os versos “Nunca conheci quem tivesse levado porrada” e não imaginá-los saindo de algo como o célebre Cabeça Dinossauro. Como o clássico dos Titãs saiu em ’86 e o primeiro (e único) LP da Patife (o perfeito Corredor Polonês) é de ’87, há quem possa dizer que minha afirmação é maldosa. Mas é importante entender que toda a efervescência de sons apresentada nesta coletânea é de início dos ’80 (’82 a ’86, pelo menos – tendo inclusive a Patife lançado um EP anterior, em 1985). E que, como fica bem claro ao estudarmos as fichas técnicas, havia um contexto mais amplo, apenas parcialmente incorporado ao mainstream, como sempre acontece.
Com mainstream ou sem (isso quase nunca importa), é impressionante descobrir uma coletânea dessas em pleno 2025. Ainda bem que temos este espaço para compartilhar descobertas como estas com todos vocês. Haja visto todas as conexões que este álbum proporciona, acho que podemos esperar desdobramentos em muito breve.
Só dá pra ouvir o álbum aqui (agradeçam à alma caridosa que subiu esta pedrada pra gente nos comentários do vídeo…ele merece!):
*Esse texto é dedicado ao Márcio, meu companheiro de pesquisas sobre raridades nacionais, ao Chris, que me apresentou metade dessas bandas aí (e não deve nem lembrar), e à Bia, que me apresentou a Chance.
**Adivinhem!