SMiLE e o custo histórico da perfeição

O "álbum que nunca existiu" possui ao menos duas versões quase definitivas. Como resultado deste conjunto, teríamos o maior álbum de todos os tempos?

Pode um álbum que, tecnicamente, não existe, ser considerado o maior de todos os tempos? A resposta curta é: sim.

Essa é uma discussão eterna, que até me lembra a menção recente que fiz aqui à história do grupo japonês Les Rallizes Dénudés – a banda que tinha como meta nunca lançar um registro fonográfico tradicional. A incompletude de SMiLE tem origens específicas, porém, e bem diferentes; o perfeccionismo enlouquecedor de Brian Wilson, as expectativas em torno do grupo após o lançamento de Pet Sounds, etc. Mas os efeitos são similares, e apoiam-se na construção de uma mística ímpar.

É preciso dizer que, abandonado, SMiLE foi completamente desidratado, e lançado apenas com algumas músicas (a maior parte em versões diferentes das que seriam as originais) no álbum Smiley Smile, em 1967 (sendo que o hino Surf’s Up ficou para o disco homônimo, de ’71). Depois disso, apenas em 2004 o projeto foi retomado devidamente, agora com o próprio Wilson apresentando sua versão “definitiva” e finalmente completa da obra. Aclamadíssimo por todo mundo, o lançamento ainda deixava algo a desejar.

Foi só em 2011 que um grupo de técnicos e músicos continuou a saga, com a consultoria de Wilson, que deu aval ao processo. Este trabalho se condensou no projeto The Smile Sessions. Um box set com 5 CDs, contendo quase todos os fragmentos gravados de SMiLE. O CD 1 é a tentativa até hoje mais aproximada de reconstituição daquilo que deveria ter sido o álbum original. Até Wilson admitiu que a tracklist e o fluxo entre as canções é realmente bem próximo daquilo que deveria ter sido. Embora ele ache sua própria versão, de 2004, melhor. Aí entra um aspecto essencial; em 2004 Brian regravou o disco todo, da forma como o havia imaginado. A reconstituição feita no Smile Sessions teve como matéria prima as fitas originais, e pôde preservar muito mais o sentimento intencionado lá atrás, em 1967.

O CD 1 conta com 19 faixas, dispostas em 3 movimentos, como foi originalmente planejado: movimento 1 – Americana (de Our Prayer a Cabin Essence); movimento 2 – o ciclo da vida (de Wonderful a Surf’s Up); movimento 3- elementos (de I Wanna Be Around/Workshop a Good Vibrations). A lógica entre as faixas e a circularidade dos temas não deixa dúvidas: havia algo gigantesco ali. Era inclusive tecnicamente impossível que tal álbum fosse lançado comercialmente com integridade conceitual em 1967. Com 48 minutos, ele teria que ser compilado em um álbum duplo. Curiosamente o formato CD nos permitiu, em 2011, acessar a obra em um fluxo que provavelmente nem poderia ter sido preservado em seu tempo original, mas que se assemelha bem mais ao que o artista pretendia.

As canções falam por si. Gee emenda na centralidade de Heroes and Villains, no primeiro movimento. No segundo, o diálogo entre Look (Song For Children), Child Is Father Of The Man e Surf’s Up arrebata. Mais pro final do álbum, Love To Say Dada retoma o tema vocal de Gee, para culminar em Good Vibrations – canção que teve vida própria para além de SMiLE, e cujo processo de gravação e pós-produção define muito o que foi (ou não foi) o próprio SMiLE: uma coleção de fragmentos muito bem concatenados.

Absolutamente atormentado pela sua própria genialidade incontrolável (e incontrolada) Wilson colore todo este percurso com algumas das melhores e mais perfeitas canções que já foram compostas – casos, certamente, de Heroes and Villains, Wonderful e Surf’s Up. Mergulha na dialética Adulto/Criança, colocando a criança como pai do homem. E assim ele vai, da infantilidade quase demente de Vega-Tables à seriedade transcendental de Surf’s Up. Brian não estava brincando aqui. SMiLE era tão gigantesco, que não pôde sequer ser completado.

O mais próximo que chegamos disso foi com este primeiro CD de The Smile Sessions. E que bom que hoje temos essa oportunidade. O que acontece é que o aspecto inacabado desse fluxo de canções é, sob a luz da história, muito mais apropriado à ideia de álbum (e de um álbum conceitual, acima de tudo) do que muito do quê ouvimos nos álbuns “acabados” saídos da mesma época. Mesmo em Pet Sounds, com sua perfeição meticulosamente calculada. Ouvido a partir de 2011, O SMiLE que pôde existir talvez seja tão grande quanto aquele que não existiu. Se estas faixas ouvidas hoje, a partir de um trabalho quase arqueológico, se completam num conjunto tão intrincado, fascinante e, por que não dizer, perfeito, não vejo motivo algo para não catapultar a famosa “obra que não existe” ao patamar que ela realmente merece. E considera-la, finalmente, uma obra acabada, à sua própria maneira.

Ainda tomado pelo luto coletivo que se segue à perda de Brian Wilson, esta é mais uma humilde contribuição em direção à compreensão mais completa o possível deste gênio incomparável. Brian vive eternamente em cada nota de sua magnum opus. E se foi, atormentado e inacabado como ela.