
Em 2019, ainda no início deste projeto, eu já comecei a chamar atenção para uma das minhas obsessões: ser discípulo da palavra de Walter Franco, até que isso dê algum resultado minimamente concreto – e por falar em concreto, é justamente daí que vamos começar.
Não tem muito o que eu possa acrescentar sobre o artista em uma visão geral, com os poucos dados biográficos que temos, que eu já não tenha destrinchado em seu Raio X. Mas vale recuperar algumas coisas para celebrar o eterno Revolver, de 1975. Disco que parece ter se gestado poucos anos antes, em duas experiências absolutamente explosivas do artista entre ’71 e ’73: a canção Cabeça, defendida no 7º Festival Internacional da Canção, na TV Globo, e Me Deixe Mudo, de seu primeiro LP, Ou Não.
Cabeça explodiu a cabeça (perdão!) de público e júri, com um jogo vocal e de samplers inspirado em Stockhausen. Walter já demonstrava que seria uma ponte entre a experimentação total, acadêmica, e a canção pop embalada por uma influência marcante da poesia concreta. Se o lado da experimentação já se via, inclusive ao vivo, em Cabeça, o alinhamento disso com a canção pop se materializa em Me Deixe Mudo. Para Augusto de Campos, “a canção com maior registro de silêncio já feita no Brasil. E com recursos de tratamento da palavra que a aproximam da poesia concreta”. Com mais de 6 minutos, a música começa com as notas ré-lá-mi, tocadas silenciosamente. Aos poucos, Walter vai sussurrando letras, sílabas, palavras, e depois frases (versos) inteiros. Lá pela metade da música ouvimos a letra cheia. Um verso só, cantado em loop. A música se constrói, com baixo, bateria. Assume o ritmo, pra depois se “desmontar”. Rock + poesia concreta. Rock Concreto. Inédito.
Walter lança recursos parecidos em seu próximo álbum, Revolver, como na música Mamãe d’água. Nela, a cada compasso ele vai adicionando palavras aos versos, até completá-lo. Depois desconstrói, e a música termina como começou. A cada “volta” um verso é adicionado, e depois retirado. Uma música construtivista, quase eletrônica (mas com acentos de rock psicodélico): matemática, e ao mesmo tempo sensorial e transcendental. A contracapa da reedição deste clássico em vinil, de 2015, revela como a canção se forma, em uma pirâmide de palavras. Com Walter, a melodia acompanha a poesia, e não o contrário. E, assim, como na poesia concreta, há algo de gráfico nisso*.

E o disco flui com outros inúmeros destaques. Cachorro Babucho (feita para o Jards Macalé, que a regrava em seu clássico, Contrastes). Toque Frágil, com os versos incríveis: o sorriso do cachorro tá no rabo; arranjo quase que progressivo e uma repetição vertiginosa. Arte e Manha é outro destaque: guitarras, teclados psicodélicos, uma letra ininteligível, mas que também revela essa “pós lírica” concreta que permeia o álbum. O suspiro final do disco é um petardo: a pequena Pirâmides embala sonhos em uma poesia afundada em reverb: expirei/pirâmides/desmaio/em espirais. A harmonia, meio bossanovista, contrasta com o tratamento do vocal “afundado”. Depois de pirâmides, Cena Maravilhosa prolonga o clima onírico e meio lisérgico desse bloco do disco que termina com a faixa título Revolver, quase que uma reprise de Me Deixe Mudo, com os mesmos acordes, mas letra totalmente diferente.
Revolver é uma máquina de sons embalados em poesia concreta. Mas é, sobretudo, inusitado. Lembro sempre como, antes de toda essa viagem concretista/experimental, o álbum se inicia com uma canção totalmente fora do escopo: Feito Gente. Distorcida e visceral, trata-se de uma das canções mais pesadas do rock brasileiro de toda a década. Por falar em década, a cada audição eu me pergunto: seria este, afinal, o melhor disco do rock brasileiro daquela década? Para mim talvez seja não só o da década de ’70, mas de todos os tempos. Cada vez que reencontro Revolver é com um senso ainda maior de estupefação e regozijo. Que álbum, minha gente.
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* Para quem não conseguiu ver direito a imagem, segue a letra transcrita. Observa-se a estrutura piramidal. Pirâmides marcam bastante este Revolver, afinal.
Iara eu te amo
Iara eu te amo muito
Iara eu te amo muito mais
Iara eu te amo muito mais agora
Iara eu te amo muito mas agora é tarde
Iara eu te amo muito mas agora é tarde eu vou
Iara eu te amo muito mas agora é tarde eu vou dormir
Iara eu te amo muito mas agora é tarde eu vou
Iara eu te amo muito mas agora é tarde
Iara eu te amo muito mais agora
Iara eu te amo muito mais
Iara eu te amo muito
Iara eu te amo



