
Este semestre leciono uma disciplina eletiva na Casa Viva chamada “Clube do Disco”. Para um breve contexto, a Casa Viva é a escolha onde minha filha, Clara, estuda, e uma das instituições de educação mais legais de BH. Uma escola que dá abertura, por exemplo, para uma maluquice construtiva como essa disciplina que, como todas as eletivas por lá, foi construída junto com os alunos, em um processo pedagógico cocriativo e dinâmico.
A ideia por trás da disciplina é buscar a essência da escuta musical – daí o nome, “Clube do Disco”. Os alunos queriam debater sobre música, buscando aquilo que vai além da mera escuta casual. Conversar sobre gêneros, estilos, culturas urbanas e a importância de artistas (e álbuns) em uma dimensão sociocultural. Eu comecei as aulas com um mergulho na história da música, até chegarmos ao fonograma como forma de registro e difusão da cultura musical, a partir do século XX. Depois propusemos uma dinâmica simples; para toda aula nós escolhemos, coletivamente, um disco para ouvir. Na aula seguinte fazemos um debate e deixamos o pau quebrar.
Neste processo, chamam atenção algumas coisas. Em primeiro lugar, o alento de ver jovens entre 16 e 17 anos interessados novamente no formato álbum. Eles já notaram o quanto os streamings andam destroçando nossa relação com a música, e querem aprofundar a audição, recorrendo aos discos e aos seus contextos. Isso por si só já é uma excelente notícia.
A segunda coisa que impressiona no grupo é notar o quanto os streamings, e a própria hegemonia das redes sociais que infestaram essa geração, já moldaram irreversivelmente alguns jovens dentro de nichos. Quem é kpoper dificilmente aceitará melhor outras coisas, mas um dos alunos que inclina mais pra esse nicho é super aberto, e cai inevitavelmente para o lado “alternativo” do espectro musical – nenhuma novidade aí. O mais curioso é notar o quanto o ranço (às vezes o anti-kpop, ou outros ranços inexplicáveis) acaba dificultando uma escuta musical mais transversal. Um dos grandes objetivos da disciplina é, justamente, quebrar isso.
Por fim, é impressionante trabalhar uma curadoria coletiva, que acaba sendo moldada pelo rumo das conversas, e não necessariamente pelo gosto pessoal de cada um. Mesmo eu tenho sido desafiado por este encadeamento aparentemente desordenado. Iniciamos a curadoria com um disco brasileiro de relevo, justamente para dar o pontapé inicial no debate com um álbum que tem ganhado cada vez mais relevância – e com um tiquin de bairrismo também: o Clube da Esquina, de Milton e Lô. Dali pulamos pra Jorge Ben, passamos pelo Japão, com o Masayoshi Takanaka e, agora, com o debate mais maduro, estamos ousando. Pulamos de ATEEZ (grupo coreano) para Mercenárias, na maior cara de pau. É até difícil explicar as conexões que vão surgindo de aula a aula, mas garanto que elas existem (kkk).
Fato é que os debates são realmente amplos. Passamos a avaliar como a música tem sido consumida, quais gêneros são relevantes e quais perdem relevância com o curso da história, o atual ocaso (será que há?) do rock, etc etc. Nada foge ao debate. Sentar para ouvir discos, e conversar sobre eles, é uma cultura que nós nunca poderíamos ter perdido, se é que perdemos. Aliás, em consonância com o que estamos fazendo, tenho lembrado sempre os meninos de que BH tem hoje um projeto voltado justamente ao debate musical coletivo. Chama “O Quartinho”, e a proposta é ouvir um álbum por mês (sempre nas últimas quarta feiras de cada mês) em algum boteco da cidade, e promover um debate depois. Espetacular.
Essa disciplina (e o projeto O Quartinho) colocam em prática o que temos falado há algum tempo por aqui; precisamos recuperar a dimensão física e humana da música. Já que não compramos mais álbuns e que perdemos o encontro das bancas de jornal e lojas de discos (coisas que, aos poucos, também temos recuperado), rodas de conversa podem ser uma saída. Audições coletivas, ensaios abertos … todo o tipo de contato mais qualificado com a música (e com álbuns, em específico) é muitíssimo bem vinda. Só para vocês terem ideia dos caminhos que andamos trilhando, segue, pra fechar este relato, uma lista dos álbuns que passaram pela disciplina. Na ordem:
- Milton Nascimento & Lô Borges – Clube da Esquina
- Jorge Ben – A Tábua de Esmeralda
- Masayoshi Takanaka – Brasilian Skies
- Black Alien – Abaixo de Zero: Hello Hell
- Kendrick Lamar – To Pimp a Butterfly
- ATEEZ – The World EP. 2: Outlaw
- Mercenárias – Cadê as Armas?
- Frank Ocean – Blonde
- Awolnation – Megalithic Symphony
- MC Saci – FunkTroit
… e contando …