
Ao longo de sua carreira, uma marca de Ney Matogrosso foi de frequentemente avançar um passo em relação ao que vinha fazendo anteriormente.
Embora icônico e até hoje considerado clássico, o grupo Secos & Molhados, cuja formação clássica tinha, além de Ney, os músicos João Ricardo e Gerson Conrad, guardavam em sua essência uma assinatura que o cantor levou apenas parcialmente para sua carreira-solo, iniciada em 1975, após deixar o grupo: aquela riqueza cênica e poética que sempre esteve presente em suas performances.
Mas Água do Céu: Pássaro, o disco, vai além de onde o trio chegou (e olha que estamos falando de um grupo que lotou o Maracanãzinho em 1974, seis meses antes do lançamento do segundo e último disco daquela formação).
Pra começar, Ney foi assistir a uma apresentação de ninguém menos que Astor Piazzola, e ao final abordou o lendário músico argentino, pedindo uma composição para que ele gravasse. Piazzola foi além e convidou Ney para gravar com ele na Itália, o que o cantor aceitou prontamente, mesmo ser ter dinheiro algum para tal. Ele então foi até a gravadora Continental, com quem havia acabado de assinar contrato, e expôs a situação. Os executivos da gravadora aceitaram bancar a aventura, que resultou na gravação de duas canções, As ilhas (letra de Geraldinho Carneiro) e 1964 (um poema apocalíptico de Jorge Luís Borges musicado por Piazzola), que geraram um compacto.
De volta ao Brasil, Ney procurou o trompetista Marcio Montarroyos, pedindo que este montasse um grupo para acompanhá-lo na gravação de seu disco de estreia, reunindo canções de nomes como Milton Nascimento e Ruy Guerra, Luiz Carlos Sá, Aldir Blanc e João Bosco, a velha amiga Luhli, que havia o levado para os Secos & Molhados e assinou algumas composições do grupo, entre outros.
Água do Céu: Pássaro abre com Homem de Neanderthal, de Sá (ele mesmo, do trio com Zé Rodrix e Guarabyra), faixa que soa mesmo como introdutória do início ao fim.
Produzido por outro nome icônico, o argentino radicado aqui Billy Bond, o disco segue inovando e algumas vezes chocando ouvidos mais conservadores – sobretudo na roqueira Açúcar Candy, de Tite de Lemos e Sueli Costa, em que Ney simula um orgasmo e duela com a guitarra de Claudio Gabis.
O álbum ainda tem América do Sul, talvez a mais representativa da carreira que viria a seguir, com a canção ganhando clipe no Fantástico, revista eletrônica da TV Globo, e à época um grande sinal de status para um artista, e a regravação de uma das músicas que habitavam a memória afetiva de Ney, Mãe Preta (Barco Negro), imortalizada na voz de Amália Rodrigues.
Num momento de dissolução de uma grande banda, como foi o caso dos Secos & Molhados, é inegável que Ney Matogrosso tenha sido dos três o que mais acertou nas escolhas para iniciar a nova carreira (Gerson Conrad procurou um caminho mais seguro, se unindo à grande cantora e atriz Zezé Motta, e João Ricardo partiu para uma carreira solo com seu disco autointitulado (mais conhecido como Disco Rosa), além de ter conseguido na justiça utilizar o nome Secos & Molhados, e a partir daí testá-lo em diversas formações ao longo dos anos. Ney foi além no disco seguinte, como dissemos no início do texto, e fez o show de lançamento de Bandido (1976) na penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro.
*grande parte das informações deste texto eu obtive visitando a exposição sobre Ney Matogrosso no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. A mostra vai até 21 de abril, e se você estiver na cidade, deve considerar visitá-la.
** as duas faixas gravadas com Astor Piazzola foram lançadas como compacto, circulando junto com o LP cheio. Após a edição em CD e streaming, as faixas entraram como bônus do álbum.
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