
A noção de que a identidade humana não é algo fixo, mas sim composta por fragmentos de diferentes experiências, aparece em várias correntes filosóficas e psicológicas. Em vez de um “eu” essencial e estável, somos entendidos como uma soma de momentos, memórias e afetos que se entrelaçam ao longo do tempo, formando uma narrativa em constante mudança. Essa perspectiva sugere que quem somos hoje é sempre o resultado de pedaços do que já fomos, organizados em um mosaico que nunca se fecha por completo.
Quando pensamos em bandas, pouquíssimas na história têm um som tão característico que com 2 segundos de música já reconhecemos. Uma das bandas que faz isso de forma primorosa é o Deftones. Em seu décimo álbum chamado “private music”, lançado agora no dia 22 de agosto, isso vai um pouco além. A percepção do disco é que a banda não é um “eu” fixo ou estável, mas sim uma soma dos momentos da carreira da banda.
Se a gente dividir a carreira do Deftones, podemos dizer que o Adrenaline (1995) é como a infância ou adolescência. É energia bruta, identidade em formação com fragmentos intensos, mas ainda caótico. É um disco cru, com a banda achando o seu som. Já em Around the Fur (1997), temos juventude com mais autoconfiança, mas ainda marcada por impulsos. É um disco pesado, já trazendo elementos etéreos e diferentes influências, fazendo uma transição da percepção do Nu Metal tradicional e do que a banda traria em sequência.
Em White Pony (2000) veio um disco pretensioso e corajoso. Um disco que furou bolhas e levou a banda de um patamar de “mais uma banda de Nu Metal” para uma banda adorada por gostos Indie e Alternativos. É uma transição, um amadurecimento com experimentação. A ruptura com o que veio antes como um ponto de virada na narrativa de identidade da banda. No Autointitulado de 2003 e Saturday Night Wrist (2006) uma fase de crise, fragmentação e turbulência emocional. Apesar de Saturday Night Wrist ser um bom disco, parece um trabalho feito de várias músicas desconexas.
No seu auge, a banda lançou em 2010 o Diamond Eyes. Um disco de resiliência após a dor e perda do baixista Chi Cheng. Foi a reorganização narrativa depois de um trauma, como fazemos com memórias difíceis. Em Koi No Yokan (2012) e Gore (2016) veio a consolidação de uma maturidade, mas ainda com espaço para a experimentação. O Koi No Yokan mais maduro e consolidado e o Gore mais metal e pesado, com influências que foram de Meshuggah a Depeche Mode. Em Ohms de 2020, a banda veio com um olhar retrospectivo, como quem junta os fragmentos e vê coerência numa vida inteira. Foi um disco mais consolidado, mas ainda faltava um temperinho diferente.

Assim, a discografia do Deftones pode ser lida como uma grande narrativa de descobrimento e crescimento. Cada disco é um fragmento ou memória, e apenas somando todos eles conseguimos compreender a identidade total da banda, exatamente como nós, que somos feitos de pedaços de vários momentos da nossa vida. Não só a banda tem seus fragmentos, mas nós, ouvintes, temos nossos próprios fragmentos conectados com ela. A cada lançamento, estávamos em lugares diferentes da nossa própria identidade.
“private music” coroa essa jornada com a profundidade de quem compreende que a essência nunca será concluída, mas sempre em mutação. O disco se destaca por sua brutalidade etérea e uma produção rica, limpa e emocionalmente poderosa. Cada música traz seus contrastes e nuances, mostrando em detalhes um pouquinho de cada momento que a banda já passou para chegar até aqui.
Esse novo discáço não é apenas mais um capítulo da carreira dessa banda única e especial. É um ponto de reflexão que reafirma a identidade musical da banda e a identidade pessoal dos ouvintes, criando uma nova peça que absorve seu passado sem nostalgia barata e entrega um presente intenso e aberto para as transformações que nunca irão acabar.
Faixas
- my mind is a mountain
- locked club
- ecdysis
- infinite source
- souvenir
- cXz
- i think about you all the time
- milk of the madonna
- cut hands
- ~metal dream
- departing the body
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