A newsletter desta semana é especial apenas com clássicos que se destacam na discoteca dos nossos colaboradores. Muita coisa velha, outras nem tanto, mas sempre com algo em comum: aquele “gostinho” de clássico. Discos que não saem da nossa cabeça e dos nossos corações, independente da época em que foram lançados!
IT’S A CLASSIC
Por Vinícius Cabral
ATRAVESSANDO TUDO ISSO*
“Where is my baby/ who took my baby”, canta Courtney Love visceralmente e sem se dar ao luxo de utilizar metáforas em I Think That I Would Die. Em uma matéria escandalosa e irresponsável da Vanity Fair em 1992, a rockstar era acusada, com base apenas em depoimentos de “pessoas próximas”, de ter usado heroína durante a gestação. O lamentável factoide levou à perda temporária da guarda de sua bebê, a hoje adulta Frances Bean Cobain, incitando ainda mais o linchamento de reputação que Love sofre há décadas.
Na verdade eu não acho que exista nenhuma outra figura na história do rock que tenha sido tão escrachada e violentada. Vítima da misoginia mais virulenta, Love era chamada de oportunista, mentirosa, cínica e manipuladora. Até hoje circulam teorias da conspiração das mais estapafúrdias que tentam vincular o trágico suicídio de seu marido, Kurt Cobain, à uma obra premeditada por Courtney Love. Mas chega de dar palco pra maluco. A teoria conspiratória que eu vim aqui refutar é a de que a artista não teria talento.
Diante da qualidade inquestionável deste Live Through This, os fãs babacas e machistas do Nirvana diziam que, provavelmente, o Kurt teria escrito as canções do álbum. A verdade mais dolorida para essas mentes pequenas e perversas porém, está escrachada nas faixas raivosas, viscerais, poéticas e reais deste disco enorme. Nas próprias palavras auto afirmativas de Courtney: “eu sou uma poeta”. E é, das melhores. Sua perspectiva feminina, lançada brutal e cruamente em versos ora secos e duros, ora metafóricos e irreais, era algo como que inédito para a audiência de rock alternativo da época, e em certa medida segue sendo até hoje. Se como homem o marido Kurt lançava mão do sarcasmo para abordar a agressão e o estupro, escrevendo, por exemplo, em Polly, do ponto de vista do agressor (ainda que fosse para denunciar o horror do ato), aquilo era, sob o ponto de vista de Love, algo perigoso e ambíguo. De fato, circulou à época da repercussão de Nevermind a história de dois estupradores que cantavam a música de Kurt durante um ato de violência sexual. Em entrevista, Courtney provocou: “esse é o tipo de gente que ouve ele (o Kurt)”. Pois é. Sua resposta viria límpida e agressiva, em Asking For It: “Was she asking for it? Was she asking nice? If she was asking for it, Did she ask you twice?“.
Será que ela pediu para ser agredida? A pergunta, gritada na veia punk clara da artista, vinha como uma pancada. Décadas depois, o movimento feminista (e qualquer movimento de pessoas com o mínimo de bom senso) segue dizendo: a culpa nunca é da vítima. Da perspectiva da vítima, da mulher relegada a um papel humilhante até, Love nunca abaixou a cabeça, e isso provavelmente acendeu ainda mais o espírito machista das “tropas culturais”. Tentaram minimizar o feito deste álbum de 1994, em vão. Eleito melhor álbum do ano pela Rolling Stone e pela Spin, o tempo só fez o disco crescer. Não somente pela atualidade dos temas, mas também pela qualidade da música.
Em relação ao estouro comercial de Nevermind, o Live Through This é quase um retorno às origens daquele punk-indie loud-quiet-loud (ao qual nos referimos bastante no episódio “O que é Rock Alternativo?”), com as explosões de distorção e gritaria em refrões arrebatadores, como já se ouve claramente na clássica faixa de abertura Violet. Se em Violet, Doll Parts e Jennifer’s Body a cantora destila a angústia silenciada da agressão, em canções como Miss World ela confronta os padrões estéticos e comportamentais os quais julgava ter que seguir, conscientemente abusando do batom vermelho e pintando os cabelos de loiro como se, para poder rasgar seus vestidos e berrar no palco, ela precisasse ter os tradicionais “traços femininos” (pelo menos em alguma medida, ainda que caricatural).
Quando Love grita, junto com as guitarras distorcidas, sua veia punk a coloca entre uma Lydia Lunch e uma Kim Gordon, destacando, por sua vez, sua personalidade única e particular. Lançado num timing terrível, apenas 4 dias após o suicídio de Cobain, Live Through This não poderia ter um título melhor. É um disco que conta a história de uma mulher atravessando todas as intempéries, lutando quatro vezes mais do que qualquer homem no mesmo cenário para se destacar, lutando para manter a dignidade diante de um escrutínio público desonesto e maldoso, lutando para ser rockstar, mãe e, para piorar, viúva de outro rockstar (este canonizado como um ídolo histórico mesmo antes de sua morte). Lutando contra tudo e todos, Courtney Love “lived trough all this” (atravessou tudo isso) e nos presenteou em 1994 com um marco da década e um cânone da história do rock alternativo. Certamente, um clássico imperdível.
*Adendo de 2024: Courtney andou recentemente desapontando os fandoms de Beyoncé e Taylor Swift. Eu nunca critiquei a diva. Os fandoms que lutem.
Por Bruno Leo Ribeiro
EXÍLIO DAS MINHAS MEMÓRIAS
Alguns clássicos ficam ali na nossa memória e a gente precisa de um tempo pra revisitar e prestar mais atenção. Quando ouvi falar da Liz Phair pela primeira vez, foi ouvindo a música “Supernova” no Lado B da MTV Brasil. Não tinha nem ideia de quem ela era ou quantos discos tinha ou qualquer outro tipo de informação.
Com o passar do tempo, aquele nome foi sumindo da minha memória até ver uma recomendação em um desses blogs dos anos 2000 que tinham os discos pra você baixar e um dos clássicos que tinha lá era o Exile in Guyville da Liz Phair. Baixei, ouvi, gostei, mas segui baixando coisa.
Essa coqueluche de sair baixando tudo do mundo foi bom, mas foi ruim. “Conheci” muita coisa, mas não estava realmente conhecendo nada. Aquele disco ficou lá no meu HD e quase não ouvia. Mas tinha lá. E tava feliz com isso.
Quando saiu o episódio do 60 Songs That Explain the ’90s sobre a música “Fuck and Run” do Exile in Guyville me diverti bastante. Descobri entre outras coisa além da sua genialidade, que a Liz conheceu a Julia Roberts num Summer Camp quando ela tinha 13 anos de idade e que ela gravou algumas demos sozinha com o nome artístico Girly-Sound e que apenas com essas demos ela assinou com o selo Matador e que esse disco de estreia era uma resposta do ponto de vista dela (música por música) ao Exile in Main St. dos Rolling Stones.
Só com esse parágrafo eu já teria motivos suficientes pra tacar um play, mas vamos continuar.
Fui parar pra ouvir o disco com calma e cacetada. Quem disco! O conceito é genial. Ela não tá exatamente falando dela, dos relacionamentos dela nem dos amigos. Ela tá fazendo um paralelo do disco dos Stones com a visão feminina dela de uma cidade pequena que ela chama de Guyville (nome tirado de uma música do Urge Overkill) e a cena de Indie de Chicago e outras cidades pequenas que ela viveu.
Fiquei ouvindo em loop esse clássico esses dias e no sábado consegui uma cópia do vinil pra chamar de minha. Recomendo demais esse clássico que precisa ser redescoberto sempre que puder.
Por Márcio Viana
O CLÁSSICO INVISÍVEL
Cilibrinas do Eden, disco homônimo da dupla formada por Lucinha Turnbull e Rita Lee, não existe. Ou melhor, existe. Será que existe? Seria um álbum de Schrödinger?
Estive recentemente no show de Lucinha Turnbull, que entre canções atuais e antigas, executou Mamãe Natureza, canção presente no repertório da dupla, que acabou sendo a única canção aproveitada no terceiro disco solo de Rita, Atrás do Porto tem Uma Cidade, junto ao Tutti Frutti, do qual Lucinha acabou fazendo parte na primeira formação, no momento em que Rita Lee decidiu seguir em carreira solo.
No entanto, não obstante o fato de nunca ter sido lançado, o disco existe, em cópia disponível no YouTube e até em meio físico (raro, é claro), em prensagens alternativas.
O álbum, aliás, teria o nome de Tutti Frutti, que acabou sendo aproveitado para nomear a banda de apoio de Rita, surgida a partir do Lisergia, grupo liderado por Luiz Sérgio Carlini, somando a parceira Lucinha na formação. A saída da guitarrista se deu por uma discordância em relação à produção de Marco Mazzola, que removeu seus vocais de Menino Bonito, mantendo somente os de Rita.
Mas voltando às Cilibrinas do Éden, o disco teria sido (e ainda é, se levarmos em conta sua distribuição alternativa) uma bela contribuição à psicodelia brasileira, num passo muito mais consciente do que os irmãos Baptista no que restou dos Mutantes, que passaram a tentar emular o rock progressivo e experimental de nomes como o Yes e o Genesis, descaracterizando aquela aura divertida e amadora (no bom sentido) que a banda carregava.
Curioso notar que a estreia das Cilibrinas no palco foi justamente abrindo show para os Mutantes, no festival Phono 73. Rita e Lúcia, empunhado violões, apresentaram o repertório para um público que talvez não tenham compreendido o que viam, segundo relatos, mas mesmo assim puderam deixar um legado em um registro que, se nunca foi oficialmente lançado, pelo menos não ficou invisível por muito tempo ao longo de seus mais de 50 anos de existência/resistência.
*em tempo: neste 22 de abril de 2024, Lúcia Turnbull completa 71 anos. Viva Lucinha!
Por Brunno Lopez
DIVA COM REPERTÓRIO
Os tempos atuais exigem pouco para que alguém seja merecedor da ribalta mainstream. A obsessão por qualquer mísera balada romântica sobre um relacionamento infeliz com floreios simples e acordes previsíveis já consagrou artistas num formato quase que canônico – mesmo sem terem absolutamente nada de especial. Sequer a rádio oficial dos elevadores aceitaria tocar certas canções em horário comercial.
Se a ideia era escrever com classe e empoderar uma geração sob uma visão genuinamente feminista nessa era pós-liberacionista (?), ora, a Sara Bairelles fez isso e muito mais em 2010 com seu contralto caloroso e seus arranjos de piano que não aceitam padrões rasos.
Kaleidoscope Heart traz mensagens semiconfessionais perfeitamente colocadas entre suas linhas vocais que brincam de fazer melodias. Ela sabe fazer o balanço complexo entre lágrimas inevitáveis e humor esperançoso apenas mudando o peso das sílabas.
Às vezes precisamos venerar o que as cortinas do algoritmo escondem, ou pior, criam personagens com essa bagagem jurando originalidade.
Sara, apesar de também ser atriz. é uma cantora e compositora que se concentra em sua obra e performance. Joga pra música. É irretocável, técnica, engraçada, musicista, completa.
Tudo o que a indústria jura ser inovador nessa contemporaneidade de glitter e lantejoula com um lá menor seguido de fá, Sara destrinchava em suas 13 canções desse álbum impecável e cheio de referências.
É isso pessoal! Espero que tenham gostado dos nossos comentários e dicas.
Abraços do nosso time!
Bruno Leo Ribeiro, Vinicius Cabral, Brunno Lopez e Márcio Viana