Um empório de verdades convenientes

Lançado em 1973, o disco de estreia é uma revolução na música brasileira, por sua qualidade sonora e lírica, e por ter driblado completamente a censura.

Imagine a cena: Natal de 1973. Um disco lançado em agosto do mesmo ano vendeu tanto e teve tantos pedidos de nova tiragem que sua gravadora precisou derreter discos encalhados de seu estoque para garantir uma prensagem que atendesse às solicitações.

Isso aconteceu, e olhe que era um disco cheio de críticas veladas à ditadura militar vigente no país havia quase uma década. Estou falando do disco de estreia dos Secos e Molhados, que reunia o violonista e cantor português João Ricardo, o guitarrista Gerson Conrad e ninguém menos do que o fenômeno Ney Matogrosso, cantor com aspirações a ator, apresentado aos colegas pela também cantora Luhli. Com o baterista Marcelo Frias, cuja cabeça aparece junto com a dos outros integrantes na capa do disco, mas que não quis ser parte fixa no grupo, lançaram um compilado de composições próprias e – com uma sagacidade impressionante da parte de João Ricardo, diga-se – algumas versões musicadas de poemas de nomes como Vinícius de Moraes, Cassiano Ricardo, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e João Apolinário (pai de João Ricardo).

É bem verdade que a formação clássica do grupo não durou muito: em 1974, às vésperas do lançamento do segundo álbum, já era claro que Ney Matogrosso era um furacão e seria difícil mantê-lo preso aos limites de um grupo. Sobretudo quando as divergências de negócios começaram a se sobrepor aos interesses artísticos: o que se diz é que João Ricardo queria que Ney Conrad assinassem um contrato que os tornava músicos contratados.

Mas falando sobre o disco, há muitos destaques entre as canções (eu diria todas), mas aqui em específico quero falar sobre a textura Beatle que permeia Fala, a melhor linha de baixo do mundo em minha opinião (cortesia do músico Willy Verdaguer) em Amor, a influência clara de Breathe do Pink Floyd em Primavera nos Dentes e é claro, a perfeição do maior hit do grupo, Sangue Latino. Presença constante e marcante no disco, Zé Rodrix comandou grande parte dos arranjos e foi responsável pela inclusão de instrumentos como órgão e ocarina nas canções.

Um fato curioso foi que Miéle e Ronaldo Bôscoli, responsáveis pela seleção musical do programa Fantástico, da Rede Globo, ficaram tão encantados com a capa do disco – as quatro cabeças do grupo servidas, cada uma num prato, em uma mesa junto outras iguarias disponíveis nos famosos empórios de secos e molhados – que selecionaram o grupo antes de ouvirem as músicas. Mais tarde Miéle confidenciaria que foi um alívio notar que eram boas canções.

Depois das saídas de Ney e de Gérson Conrad – que se juntou a Zezé Motta numa nova carreira – João Ricardo tentou manter o grupo com inúmeras formações, mas o sucesso nunca se repetiu.

O disco de estreia dos Secos e Molhados, além de ser essa revolução sonora e lírica, tem um caráter inusitado dentro da música daquela década: as letras eram tão complexas e arrojadas que o disco foi 100% liberado pela censura, que provavelmente não entendeu o recado de nenhuma delas.