
É simplesmente impossível falar de Horses, disco de estreia de Patti Smith, de uma forma técnica. Não há nenhum jeito adequado de fazê-lo sem enveredar por uma análise sociológica, talvez antropológica.
Por exemplo: o impacto de um disco cujas primeiras palavras expressadas são “Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não os meus” não passa batido sem pensarmos que a artista vem de uma família religiosa, especificamente das Testemunhas de Jeová, e ao tentar estar integrada a ela, sofreu agressões e hostilidades severas, dentro e fora da igreja, deixando-a quando ouviu de um ancião que não havia espaço para a arte no reino de Deus.
O trecho em específico abre a canção Gloria, uma cover do Them, banda seminal da Irlanda do Norte da qual fez parte Van Morrison, autor da música. Aqui cabem aspas em “autor“, visto que a versão de Smith é uma recriação significativa da obra, que é praticamente uma “cama” para divagações e contestações da artista.
É também difícil de se imaginar como seria Horses se não tivesse sido produzido por John Cale, escolhido pela artista por conta da sonoridade crua de Fear, disco-solo de Cale. A tensão criativa proporcionada por conflitos entre Cale e Smith – algo natural, considerando a grandeza de ambos – acabou por gerar um álbum caótico, mas é assim que se faz um clássico.
A banda do disco era formada por Jay Dee Daugherty na bateria, Lenny Kaye na guitarra, Ivan Král no baixo e Richard Sohl nos teclados, e ainda houve a participação de Allen Lanier, do Blue Oyster Cult, e Tom Verlaine, do Television, o que particularmente trouxe ainda mais tensão às gravações, já que os dois protagonizaram brigas ao longo da gravação, chegando até às vias de fato ao final.
O ano era 1975, já não havia mais Beatles, Jimi Hendrix, Jim Morrison Janis Joplin ou Brian Jones. Elvis já tinha 40 anos e uma carreira em declínio. Talvez o rock precisasse de novos ícones.
Só que Patti Smith não tinha exatamente essa ambição. Horses é um disco experimental, inovador sem ser pedante, um desfile de contestações poéticas sobre um tapete nada macio de sons. É proto-punk e ao mesmo tempo é pós-punk fora de época. É improviso que vem do free jazz, mas sem o jazz. O papel de Cale na produção foi mais de acertar detalhes que fizessem a diferença, como por exemplo convencer os músicos a usarem instrumentos melhores, que pelo menos permitissem uma afinação. Uma sintonia fina na energia do disco.
Elegie, com a guitarra de Allen Lanier, é uma homenagem a Jimi Hendrix, declaradamente, mas acaba por estender sua ode a outros músicos, como os citados uns parágrafos acima. Mas é difícil de verdade classificar qualquer letra de Horses ou outro disco dela como uma peça única focada em um tema, assim como é praticamente impossível tratar este disco como um conjunto de canções separadas. Ao longo das oito faixas, o que se ouve é um discurso longo de quem tem as palavras transbordando e implorando para serem ditas.
Em novembro de 2025, o disco completou 50 anos, o que traz tudo o que se espera de efemérides como essa: shows comemorativos e uma edição especial do álbum, com outtakes e demos.
Ademais, vale o velho clichê: passados todos este anos, o disco ainda soa atual. Talvez porque seja um disco imprevisível em um mundo previsível.
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