Democratização da música ou pura preguiça?

Como a Inteligência Artificial está transformando a produção musical? Das drum machines ao Suno, uma reflexão sobre tecnologia, democratização e os limites entre ferramenta e substituição da arte.

Imagem não gerada

Na produção de música, muitas ferramentas foram se desenvolvendo ao longo dos anos. Para conseguir gravar uma banda nos anos 60 ou 70, era preciso inúmeros equipamentos, estúdios e produtores. Tudo isso com um custo super alto. Em resumo, uma banda ou artista ia fazendo barulho na sua cena local e alguém, ou amigo de alguém, ia no show e assinava um contrato de gravação.

Passaram alguns anos e continuou meio assim, mas a tecnologia foi facilitando algumas coisas. Gravadores de quatro canais caseiros, drum machines e sintetizadores que não eram mais do tamanho de uma sala, facilitaram muita coisa. Prince começou a usar batidas eletrônicas e o Nebraska, de Bruce Springsteen, foi basicamente as gravações que foram feitas como demo em fitinha.

Aí começaram a aparecer os DAWs, ou Digital Audio Workstation (Pro Tools, Logic Pro, Ableton Live, etc) e a mixagem foi se democratizando. Não se precisava mais da validação de uma mesa de SSL caríssima pra se ter um resultado excelente. Agora, com tudo digital, mais takes ficaram possíveis. Menos custo e menos aquele filtro de um “olheiro” lá do começo do texto.

Depois de um tempo, inúmeros plugins, simuladores de amplificador, samplers de bateria e até programas pra criação de acordes e timbres com apenas um botão, apareceram e ficaram. A criatividade ficou praticamente sem limites. Uma coisa que era extremamente surreal de fazer nos anos 70, agora demora literalmente 5 segundos pra colocar um efeito específico em um dos beats do groove da música.

E agora temos aí a IA. Tudo ficou tão fácil quando ir no Claude.ai, pedir pra escrever uma letra de música sobre o tema “x” e jogar essa letra no Suno com algumas instruções escritas e boom! Música tá pronta. Só jogar nos streamings e ser feliz.

Bem, muita gente tem feito isso. Mas não é a Dona Maria hipotética que tá criando música de IA e jogando no Spotify, são profissionais (e até Streamings) ou semi amadores da música fazendo isso. O que era pra ser uma ferramenta de apoio, talvez um caminho pra uma ideia ou sei lá (não consigo imaginar ainda uso útil e ético para tal), está sendo simplesmente jogado ali sem o mínimo esforço.

O CEO da Suno foi em um podcast (sempre um podcast filmado com gente falando bobagem) e disse que fazer música dá muito trabalho. Tem que aprender um instrumento e se dedicar. Com Suno é só pedir que a música sai pronta. Mas essa música não passa de um retalho de covers e zeros e uns, sem emoção nenhuma. Sem nenhum esforço. Apenas transformando uma arte em puro produto de consumo.

É pra entrar em playlists genéricas, vídeos institucionais corporativos entediantes, comerciais sem verba (só tem verba pra mídia, mas pra produção nunca tem) ou pra ser apenas música de fundo das Zaras, C&As e H&Ms da vida. É a música feita pra gente que não liga. Que música é apenas um outdoor no ponto de ônibus. Uma faixa de pedestre que nenhum carro para. É apenas um meh. Um bleh. Uma qualquer coisa.

Mas o grande X da questão pra mim é sobre o gosto. O propósito. Todo mundo hoje em dia tem câmera no telefone e nem todo mundo é fotógrafo ou tira boas fotos. Vai ter gente que vai usar IA pra música, roubar uma ideia ali, um trechinho acolá, uma ideia de groove ou um loop como inspiração com bom gosto. Acredito sim que isso pode acontecer e provavelmente será com produtores e músicos que já são ótimos.

O John hipotético por aí, ainda é cafona. Ainda gosta de estética de clínica odontológica com revista Caras de 2012 na recepção. O gosto questionável sempre vai existir. Depois dessa coqueluche de IA, muita gente vai tentar tirar proveito disso pra capitalizar, mas a música já está completamente saturada. Não vai dar pra enriquecer com 1 milhão de plays no Spotify, amigo. Esquece.

Quem não se importa e acha que música é apenas qualquer coisa, não tem muito o que fazer. Se não se importam em dar play em artista que não existe, vai lá. Quem dá valor, sempre vai reclamar quando descobrir que o artista é de mentira. E será muito difícil de diferenciar em algum tempo. Resta a gente prestar atenção e fazer a curadoria como sempre fizemos.

Conectando com emoções, histórias e pessoas (pena que alguns artistas na vida de pessoa física são lamentáveis), mas ainda humanos. Que essa febre de IA passe e vire apenas uma ferramenta assim como foi quando a bateria eletrônica apareceu. Nem todo mundo vai usar e quem usar do jeito errado, vai ficar datado e pra trás.

Ainda tenho esperança.


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